
Por Fransérgio Goulart e Giselle Florentino
Em primeiro lugar, impedir que ocorra o debate amplo e popular da abolição das polícias e das prisões interessa diretamente ao capital e seus dirigentes e principalmente ao Estado. Afinal, a militarização é uma das formas mais exitosas de alavanca de acumulação do capital, como bem definiu Rosa Luxemburgo1 em seus escritos.
Ressaltamos que a função social da polícia é ser o braço armado e repressivo do Estado, atuando para a manutenção da ordem burguesa e a proteção do caráter inviolável da propriedade privada. A invenção de guerras e a construção de inimigos é um força motriz de produção e reprodução do capital.

Um bom exemplo dessa alta lucratividade da militarização para o modo de produção capitalista são os gastos públicos com políticas de segurança pública, atualmente o enorme direcionamento de cifras dos Estados-nações para compras de novas tecnologias de controle de corpos e de produções de morte.
Mesmo com a pandemia de Covid-19, os gastos globais com militarização aumentaram no ano de 2020. Segundo relatório do Stockholm International Peace Research Institute (Sipri), ocorreu um aumento real de 2,6% em comparação com o ano anterior, totalizando US $1,98 trilhão gastos com armamentos pelos países de todo o mundo. Em que 5 países concentram 62% do total investido para militarização são eles: Estados Unidos, China, Índia, Rússia e Reino Unido.
Em 2020, o Brasil utilizou US $19,7 bilhões em gastos militares, sendo 15º país do ranking mundial que mais utiliza orçamento público para fins militares, correspondendo a aproximadamente 51% do total de gastos militares em toda América Latina, de acordo com a SIPRI.
Segundo o Ministério da Justiça (MJ), no início da década de 2010, mais da metade das armas de fogo que circulam no país é ilegal e de acordo com a Polícia Federal, a maior parte das armas apreendidas no Brasil vem do Paraguai e dos Estados Unidos.
A criminalidade só existe porque há participação direta no Estado. Dentro da lógica de acumulação de capital da sociedade capitalista a polícia vai criando seus negócios, como grupos de extermínio, segurança privada ilegal e com o projeto de Milicialização enquanto política de segurança pública, onde as milícias controlam atividades econômicas inteiras em favelas, também disputam o comércio do tráfico de drogas.
Para além do Estado, da indústria mundial de armas e drogas e das burguesias nacionais, existem outros atores que também se interessam por inviabilizar a não abolição das polícias e das prisões.
Como por exemplo, os pesquisadores de segurança pública do campo de direita e de esquerda. Divergem em princípios ideológicos, mas atuam para manutenção de privilégios econômicos e simbólicos.
Os pesquisadores “de direita” não escondem seu real interesse de promoção do genocídio da populaçao negra, bem como, o aumento de controle de corpos e utilizam-se de formulação de produção acadêmicas cada vez mais repressivas e políticas de tolerância zero junto com o fomento de novas tencnologias para a produção de mortes.
Enquanto, o campo dito da esquerda e progressista é quase um constrangimento moral o debate de abolição das polícias e das prisões, em que tentam sair pela tangente através dos debates intermináveis sobre as reformas e protocolos para a instituição policial. Ademais, entender que este campo de esquerda partidária e institucional apenas chegam no máximo até a reforma da polícia e são contra a abolição das polícias é porque lucram com a ideia de formação cidadã para polícia, com a venda de modelos de gestão, e com a construção de dados mediados pelo interesse do Estado e não da população.
Vale aqui ressaltar que a Universidade é mais um espaço ideológico hegemônico da reprodução do capital, com raros tentáculos de resistência. Hoje, os cursos de segurança pública garantem pomposas cifras inclusive para as universidades através de convênio com as polícias e o Estado.
“Os pesquisadores de segurança pública do campo de direita e grande parte dos da esquerda divergem em princípios ideológicos, mas atuam para manutenção de privilégios econômicos e simbólicos”.
Fransérgio Goulart e Giselle Florentino
Um dado importante sobre a relação estreita das Polícia dentro das Universidades é a atual construção do Observatório Social da Operação Segurança Presente”, vinculado à Pró-reitoria de Extensão e Cultura (PR-3) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), um convênio que visa “tornar o Programa Segurança Presente uma política pública cada vez mais sólida e com embasamento científico. A ideia é produzir conhecimento, realizando pesquisa e capacitação, com base na humanização, direitos fundamentais, prevenção, mediação social e cidadania, contribuindo para a qualificação da Operação.”
O Programa Segurança Presente institucionalizou o poder territorial de grupos de milícias, a IDMJR recebe inúmeras denúncias de moradores e moradoras relatando a truculência, a agressividade e a humilhação nas abordagens de policiamento ostensivo do Segurança Presente, os mais impactados com a atuação deste Programa são os trabalhadores informais.
A área de Camelódromo de Nova Iguaçu ficou fechada durante 3 dias no mês de Dezembro de 2019 pelo Segurança Presente que impediu os vendedores informais realizarem seu trabalho devido a nova divisão política do recebimento do “arrego”. Já que agora também precisa ser pago para membros do Segurança Presente e também das Polícias.
Após o fiasco da UPP Social, que apenas resultou na potencialização da Milicialização como política de Estado e o espraiamento da violência urbana para outras áreas do território fluminense, a UERJ insiste em colaborar e legitimar uma política de segurança pública genocida. O convênio estabelecido com a Secretaria do Estado de Governo (SEGOV) garante o financiamento R$ 352 mil apenas para 1° semestre de funcionamento do Observatório Social da Operação Segurança Presente.
Há uma escolha política do Estado na construção da política de segurança pública em legitimar e incentivar a expansão da militarização dos territórios através do investimento em armamentos bélicos que resulta em fortalecimento do poder das milícias em detrimento de politicas sociais que possam prover uma vida decente para a população em tempos de pandemia mundial.
Ademais, Recentemente a pesquisadora Jaqueline Muniz da Universidade Federal Fluminense, em entrevista dada no dia 02 de junho de 2021 ao portal DCM afirmou: “Pedir fim da PM é uma cloroquina da esquerda”, ou seja, ela pode não querer acreditar, fazer a crítica, tudo isso é válido, mas não deslegitimar e ofender uma tática e estratégia que parte de uma perspectiva não colonizadora, majoritariamente negra e pobre e acima de tudo, construída por movimentos populares.
Nessa mesma entrevista a pesquisadora afirma que foi uma das idealizadoras da força de segurança nacional, essa afirmação é no mínimo contraditória, pois sabemos que o mesmo campo político que ela atua diz que não é com mais polícia que enfrentamos a criminalidade e mesmo sim, são os principais nomes que dão apoio e legitimidade às ações repressivas do Estado.
De esquerda a direita, a segurança pública garante manutenção de espaços de poder e muita grana. Já que os partidos mais conservadores defendem a máxima racista “bandido bom é bandido morto”, enquanto o campo progressista insiste na falácia de reforma e controle das polícias. Em ambas as falas, o sistema capitalista e sua reprodução está garantida.
Outro grupo que não se interessa pela abolição das polícias no Brasil são grande parte da população branca2. Quando as pessoas, especialmente as brancas, consideram um mundo sem a polícia, imaginam uma sociedade tão violenta quanto a atual, pois a ideologia de aplicação das leis, no imaginário, é a ferramenta para conter a violência.
Como sociedade, fomos tão doutrinados pela ideologia de resolução dos problemas policiando e encarcerando que muitos não conseguem imaginar outra coisa senão prisões e a polícia como soluções para a violência e seus danos. E os brancos com privilégios são mais difíceis ainda, pois essa luta coloca fim em quem os “protege”, a proteção de suas riquezas.
A grande mídia hegemônica também não se interessa pela pauta, já que a ideologia burguesa defende a dita “guerra às drogas” em que corpos pretos estão disponíveis para serem criminalizados nas vitrines dos meios de comunicação, reforçando a ideia de um inimigo público a ser combatido.
Portanto, o resultado de uma política de segurança pública que envolve o investimentos em armas de fogo, drones atiradores, caveirões e equipamentos que visam o abate e subjugação da população, fortalecimento da truculência policial, legislação que legitima e isenta o abuso policial somado ao esvaziamento e amplo sucateamento das políticas sociais não poderiam resultar em outra realidade: recorde de assassinatos, execuções, desaparecimentos forçados e pessoas privadas de liberdade no sistema carcerário.
Para mudar esse cenário estrutural de genocídio da população negra, não basta as tentativas falidas de reforma e controle das polícias, para garantir a sobrevivência da população negra hoje é urgente o fim das polícias e das prisões.
1LUXEMBURGO, Rosa A Acumulação de Capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. Tomo II São Paulo, Abril Cultural, 1984a
2 https://dmjracial.com/2021/02/22/branquitude-e-a-dificuldade-de-defender-a-abolicao-da-policia/