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Por: Beatriz Vidal


Como parte de sua violenta repressão aos protestos contra o racismo e a brutalidade policial, as forças de repressão dos EUA têm rotineiramente disparado balas de borracha contra manifestantes desarmados, de Minneapolis a Los Angeles, Phoenix a Nashville etc. Essas armas “não-letais” ou menos letais se tornaram uma ferramenta padrão do policiamento nos EUA, juntamente com gás lacrimogêneo e spray de pimenta, usadas livremente contra manifestantes e jornalistas.

E não só nos EUA. A polícia de choque francesa usou em grande escala projéteis desse tipo contra o movimento de protesto dos “coletes amarelos”. Em maio de 2019, a violência policial deixou 24 pessoas cegas e mais 283 com ferimentos na cabeça, a maioria causada por balas de borracha.

Isso não causará surpresa na Irlanda do Norte, o primeiro laboratório do mundo em que foram usadas balas de borracha e plástico. Lá, essas armas supostamente “não-letais” mataram dezessete pessoas, incluindo oito crianças entre dez e quinze anos.

De Derry, na Irlanda do Norte, a Detroit, nos EUA, as forças policiais usaram repetidamente balas de borracha para infligir ferimentos graves ou morte a civis indefesos. Sempre foi uma forma diferente de violência letal, não uma alternativa a ela, e seu uso contra manifestantes deve ser tão inaceitável quanto o uso de munição real.

A Lei Federal 13.060/2014, que disciplina o uso de armas não letais pelos agentes de segurança pública em todo o país, determina que os policiais devem priorizar o uso de armas não letais quando os infratores não representarem risco à vida do agente de segurança ou a outras pessoas.

Em 2019, prevaleceu o voto do ministro Edson Fachin, para determinar que a referida lei é constitucional, entendendo que o objetivo da lei é a garantia do direito à vida. Para ele, não há ofensa à autonomia estadual ou à iniciativa privativa do presidente da República, nem usurpação da competência dos órgãos administrativos do Estado.

“A finalidade de resguardar o direito à vida e à integridade física, ainda que implique a atribuição de deveres funcionais, legítima a iniciativa parlamentar. O dever imposto pela lei se destina de forma genérica e abrangente a todos os quadros integrantes dos serviços de segurança pública como agentes do Estado que detém, com exclusividade, a possibilidade de usar a força”, disse Fachin.

No entendimento do ministro Fachin, o Estado deve legislar de forma bastante restrita sobre as hipóteses em que esse uso é autorizado. “A lei limita-se a prever obrigações que decorrem da proteção do direito à vida, dentre elas a de impedir que qualquer pessoa seja arbitrariamente privada dela. O uso de meios menos gravosos tem como objetivo respaldar e concretizar esse com boas práticas e normas de conduta para a atuação de policiais”, disse. 

A falsa crença de que uma mão forte resulta em maior segurança tem facilitado o fortalecimento de medidas autoritárias, justificando a saída do exército às ruas para a realização de funções de policiamento, validando múltiplos abusos por parte da polícia e das forças de choque no contexto de protestos sociais, normalizando a violência e o tratamento desumano e degradante nas prisões e mascarando a discriminação de classe e raça que criminaliza a pobreza e a filiação grupos étnicos e raciais.

As armas menos letais foram realmente projetadas para reduzir o risco de ferimentos graves ou morte em intervenções de ordem pública ou em cenários de detenção?

As armas menos letais são meios de coerção e podem causar danos físicos irreparáveis, incluindo a morte, principalmente quando boas práticas ou as instruções do fabricante não são implementadas. Por esse motivo, o Estado só deve dotá-las àqueles que receberem treinamento para o seu manejo adequado, e depois de haver desenvolvido regulamentações robustas sobre seu uso, mesmo sabendo que com todo arcabouço jurídico não estaremos livres de produções do terror de Estado. 

Em 2017, um estudo para o British Medical Journal analisou o impacto de “projéteis de impacto cinético” (KIPs, outro termo para balas de borracha). O estudo reuniu evidências da Irlanda do Norte, Turquia, Índia, EUA e outros países entre 1990 e 2017. Constatou que 3% dos feridos por balas de borracha morreram como resultado de seus ferimentos, enquanto 15,5% sofreram deficiências permanentes. Quase metade dos que foram atingidos na cabeça ou no pescoço foram mortos:

“Dada a imprecisão inerente, o potencial de uso indevido e as consequências associadas à saúde de ferimentos graves, incapacidade e morte, os KIPs não parecem ser armas apropriadas para uso em ambientes de controle de multidões. Existe uma necessidade urgente de estabelecer diretrizes internacionais sobre o uso de armas de controle de multidões para evitar ferimentos e mortes desnecessários”.

De acordo com a Omega Research Foundation (doravante Omega), as armas menos letais utilizadas com mais frequência nas Américas são: agentes químicos irritantes (gás lacrimogêneo e spray de pimenta), projéteis de impacto cinético (balas de borracha), bastões, algemas e outros instrumentos de contenção, mangueiras de água pressurizada, granadas de choque (comumente conhecidas como granadas/bombas de efeito moral no Brasil),  e armas de choque elétrico. O conhecimento do objetivo e das circunstâncias do uso potencialmente legítimo de algumas dessas armas menos letais permite a análise objetiva de exemplos problemáticos de seu uso, como os incluídos neste mapeamento interativo da Omega sobre incidentes envolvendo agentes encarregados da aplicação da lei no contexto da Covid-19.

Nos anos 90, a Organização das Nações Unidas passou a recomendar a utilização de armas não letais, com o objetivo de preservar vidas e o uso de balas de borracha se tornou comum ao redor do mundo. Mas o que a indústria tem feito para garantir a segurança desse tipo de munição? Em São Paulo, a Defensoria Pública move uma ação que pede o estabelecimento de parâmetros mínimos de atuação para a Polícia Militar em protestos. Gabriella Talhaferro é uma vítima. Em 2019, quando tinha apenas 16 anos, foi a um baile funk em Guaianazes, mas a polícia interrompeu a festa. Após tomar um tiro de bala de borracha, ela perdeu completamente a visão do olho esquerdo.

A discussão sobre o uso da munição de borracha emerge com frequência em momentos de grandes manifestações, como nos últimos anos. O que as passeatas demonstraram, além da insatisfação de parcelas da população, foi a violência policial na contenção dos movimentos. Com jatos de água, bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, a Polícia Militar dispersa os manifestantes, mas fere muitos outros. O fotógrafo Sérgio Silva perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingido por um projétil de borracha enquanto cobria as manifestações de junho de 2013. Doze anos antes, outro fotógrafo, Alex Silveira, também perdia a visão do olho esquerdo em decorrência de um tiro de bala de borracha em protestos.

O uso do armamento durante as manifestações é alvo de críticas e tem sido questionado pela população, movimentos de favelas e periferias e por profissionais da imprensa, embora a própria polícia afirme o considerar necessário para a dispersão dos manifestantes por praticarem atos de vandalismo. Sérgio Silva entrou com processo contra o Estado de São Paulo pedindo indenização pela perda da visão, mas teve o pedido negado em primeira instância porque, segundo o juiz, se “colocou em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer”. Alex também.

Em dezembro de 2014, foi sancionada a Lei 13.060 que enumera critérios sobre o uso de instrumentos de baixo potencial ofensivo por agentes de segurança pública, que devem obedecer a critérios de legalidade, necessidade, razoabilidade e proporcionalidade. No entanto, não fala especificamente sobre o uso de balas de borracha. André Vianna, especialista em segurança pública e direitos humanos e consultor do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, explica que há uma questão não resolvida sobre o uso desse equipamento.

A bala de borracha é lançada através de uma espingarda, que é uma arma de fogo, e as armas de fogo só podem ser utilizadas quando os policiais ou terceiros correm risco iminente de morte. Vianna pontua que, durante as manifestações, não há esse risco para a vida do policial nem a do manifestante. Ainda aponta que “essa munição, se for mal utilizada, pode ser letal”.

As normas nacionais e internacionais que legislam sobre o uso de armas, segundo Vianna, estão desatualizadas porque surgiu a munição de borracha. São munições sub-letais, mas são armas de fogo”. E, nessa situação em que não estão definidas as condições em que armas com balas de borracha podem ser utilizadas, a regulação acaba saindo das mãos da justiça. “Ele [o armamento] efetivamente ainda não está regulado. Quem regula o emprego da munição de borracha são os fabricantes que determinam, junto com diversas polícias, o seu uso”, afirma Vianna.

Como outros projéteis semelhantes feitos de plástico, cera e madeira, as balas de borracha podem ser usadas para práticas de curto alcance e controle de animais, mas são mais comumente associadas ao uso no controle de distúrbios e à dispersão de protestos. 

A quem interessa a produção e uso das armas ditas não Letais?

A resposta é simples e objetiva a frações de classe donas das indústrias armamentistas e as forças policiais.

Para Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial todos esses marcos legais ou tentativa de construção de protocolos para o uso desses artefatos de guerra, nunca irão deter ou controlar as instituições policiais, pois não se trata dos artefatos, mas sim de quem eles desejam controlar ou genocidar.

Por fim, toda essa construção militarizada construída pelo neoliberalismo trata-se de mais uma forma de acumulação do capitalismo, basta vermos hoje que os pretextos mais absurdos são evocados para se fazer a guerra e o uso desses artefatos, seja pela defesa dos Direitos Humanos, a imposição da democracia ou a remoção de um suposto ditador, logo, tudo isso só para ocultar o que está por trás de fato: os interesses dos grandes grupos capitalistas de lucrarem com os conflitos armados.

E qual seria o caminho diante disto? Construir a luta pela abolição das policiais e outras formas de sociabilidades fora do marco do capitalismo, até por que, nossa história não se restringe a esse sistema.

Um grande boicote internacional para a não compra desses artefatos de guerra, poderia ser uma ação concreta de movimentos e Organizações sociais.


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