
Por: Monique Rodrigues
“A perda da pessoa, ela só não significa nada, para quem olha enquanto um número”.
Fabbi Silva, Mulher preta favelada. Licenciatura plena em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cursando Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – ProPED (UERJ). Idealizadora e Coordenadora Pedagógica da Associação Apadrinhe um Sorriso. Coordenadora de Mobilização da Associação Casa Fluminense e Conselheira de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro.

Desenvolver ações e morar dentro de um mesmo território é um grande desafio para mulheres negras na Baixada Fluminense. O cuidado com o outro precisa ser cercado de inúmeros autocuidados que nem sempre essas mulheres têm condições e tempo de realizar. 25 de Julho com a celebração de Mulheres Negras, Latino Americana e Caribenhas mostra também um panorama de barreiras que mulheres lidam dia a dia, na tentativa de tornar seus territórios menos desiguais. O projeto Apadrinhe um Sorriso, trouxe um impacto positivo para muitas crianças e suas famílias, entretanto sua idealizadora e nossa convidada apresentou reflexões fundamentais sobre território da baixada e suas especificidades.
Monique Rodrigues: Antes de desenvolver ações nesses lugares, vocês pensam em estratégias de proteção? Nos fale um pouco disso?
Fabi Silva: Começar falando um pouco sobre o que é o Apadrinhe um Sorriso, é uma ação que acontece há 12 anos no território, eu nunca precisei pensar em estratégia de proteção porque eu era do território né. Eu morava no Parque das Missões, sou cria do território, saí tem pouco tempo, exatamente 3 meses, mas anteriormente eu era cria. O projeto surge a partir da necessidade que eu tinha de fazer alguma coisa que beneficiasse o território, colocando a minha formação em Pedagogia em prática, pensando educação popular, para além da educação formal escolar.
Então eu nunca pensei estratégia de proteção porque meu trabalho era com foco em educação e leitura,quando ele foi crescendo e desenvolvendo e alçando um outro patamar, aí é que comecei a me envolver em um olhar e pensar político, não político partidário mas político no sentido de mudança estrutural, porque eu entendia que algumas das ações que a gente realizava com a literatura, ela pedia também, um olhar em relação a ausência de políticas públicas voltadas para o saneamento básico, educação, a própria saúde, quando a gente começa a desenvolver um trabalho com mulheres.
Monique Rodrigues: Como desenvolver ações e projetos sociais em áreas militarizadas?
Fabi Silva: O Apadrinhe um Sorriso, talvez porque ele surgiu de uma pessoa do território, envolvendo pessoas do território e pautado na educação, a gente nunca tinha enfrentado problemas da ordem, pensando na questão do tráfico, da polícia, então a gente nunca teve essas questões, porque os filhos desses traficantes eram nossos alunos, a gente nunca teve questões em relação a isso. Eu sou professora, eu dou aula né, eu não escolho os meus alunos, pelo contrário, eu sou escolhida por eles. E desenvolvemos o projeto muito nessa pegada, de envolver a comunidade, porque o trabalho da gente é voltado para o desenvolvimento comunitário.
A gente inicia com um projeto de leitura, que passa a ser com teatro e dança, depois entra capoeira, e paralelamente a isso a gente continua com o projeto de apoio escolar, e com trabalho com as mulheres, então a gente nunca enfrentou nenhum tipo de dificuldade dentro do território, em relação a isso, inicialmente. Levando em conta que temos 12 anos de estrada.

Quando eu me envolvi com política partidária, e apoiar um candidato no território, isso mudou, mas até então como eu nunca tinha me envolvido, era só o projeto em si, eu nunca tinha ficado sob o holofote de ninguém, ao apoiar uma candidatura eu fiquei dentro do holofote, mas foi só eu, não impactou o projeto diretamente, e isso é legal porque a gente tem muitos voluntários do próprio território que nunca se colocaram nesse lugar, eu que fui a afrontosa da vez.
Monique Rodrigues: Você já deve ter convivido e visto assassinatos produzidos pelo Estado onde mora. Como é viver com essa memória, e como tentam ressignificar essa dor?
Fabi Silva: Eu não só vi assassinatos produzidos pelo Estado, como eu também sou familiar de um jovem negro assassinado por essa ausência de política de segurança, eu falo ausência porque pra gente ela não existe. Ou melhor, ela até existe mas de uma forma violenta, agressiva, não de cuidado. O meu irmão com 16 anos, foi assassinado pelo os agentes de segurança do Estado, era negro, estudante, não tinha envolvimento com tráfico, nem fumar maconha o Fagner fumava mas infelizmente ele nasceu dentro de uma realidade que ser negro é marca de culpa. Isso tem 16 anos, vai fazer 17, e ressignificar essa dor, é isso, a gente trabalha para que outros jovens não estejam na mira, e para que outras famílias não precisem passar pelo o que a gente passou, e passa né.
A perda da pessoa, ela só não significa nada, para quem olha enquanto um número, mas a gente que é familiar, a gente olha enquanto uma vida, um amor, uma potência que deixou de existir neste plano. Eu ressignifico trabalhando para que outras pessoas não vivenciem essa dor. Difícil né, mas é uma tentativa, é o que a gente pode fazer.
Monique Rodrigues: Você consegue identificar dentro da sua realidade uma proposta para enfrentar essa Violência do Estado nesses territórios militarizados?
Fabi Silva: Eu respondo só com o que eu já faço: educação. Projetos de educação como eu idealizei, o Apadrinhe um Sorriso, o projeto do Jota Marques, o Coletivo Marginal; a Biblioteca Chocobim da Maria Chocolate; o projeto Sim, Eu sou do Meio, da Bárbara em Belford Roxo; A Biblioteca Irmãos Kennedy na Vila Kennedy; o Coletivo Fala Acari, que também desenvolve um projeto de educação popular, pensando na comunicação comunitária. Esse é o caminho. Estruturar que essa nova geração entenda que a vida dela tem um sentido, e que vale. Justamente por valer ela precisa e merece ter a garantia de direitos assegurados. O caminho é a educação, e não só por ser educadora e enxergar na escola o único meio de transformação possível, e sim por ver e ser fruto dessa prática de educação transformadora. Eu nasci em uma realidade que eu precisei parar de estudar muito cedo e voltei com 12 anos, e não foi um retorno fácil mas foi preciso e necessário.
Ao voltar com 12 anos eu nunca mais parei, e eu entendo como a educação mudou a minha vida. As relações com familiares, com o próprio território, a forma como eu vejo o mundo, a educação vira uma chavinha, que é a chave do conhecimento,que diferencia você dos seus pares. E falo, não como se eu fosse melhor, pelo contrário, mas é sobre o acesso à informação que o conhecimento possibilitou que eu tivesse um outro olhar sobre a realidade. Muito do que eu faço no Apadrinhe um Sorriso, e os impactos que ele possibilita, dentro e fora de Duque de Caxias, é por ter tido um olhar sobre os impactos na vida das pessoas. Eu sou um exemplo disso.
As relações cotidianas dentro dos territórios são sempre mediadas por relações sensíveis que atravessam o Estado nas suas construções de interesses e disputas. Os resultados das ações de incentivo à leitura são fundamentais nos territórios da baixada. Mulheres negras que fazem parte desses movimentos sociais estão sempre no front das mediações. No enfrentamento às violências de Estado os enfrentamentos estão nas estruturas institucionais, racismo, machismo e classismo estão nas entranhas desses espaços, impactando também nas resoluções dos direitos civis instaurados por uma série de políticas públicas insuficientes para atender a população.
Atuar nesses contextos demanda muito comprometimento e constante cuidado com todas as redes ligadas aos projetos. Mulheres negras nesse cenários são definidoras de possibilidades de diálogo e ação que só elas podem produzir. Celebrar 25 de Julho, Tereza de Benguela, Mulheres Negras Latino Americanas e Caribenhas é registrar para todas as gerações a luta cotidiana, coletiva e interminável dessas mulheres.