
Por Monique Rodrigues
O combate ao racismo se faz por muitas vias, Mulheres Negras estão na vanguarda dessa luta. Abrindo essa série de entrevistas, vamos apresentar olhares e reflexões de mulheres negras que estão na linha de frente pela garantia de direitos básicos, na disputa pelo combate ao racismo, e sobretudo, na manutenção da memória preta.
Gláucia Marinho é uma dessas mulheres atravessada por inúmeras resistências. Nós da IDMJR agradecemos e compartilhamos a luta coletiva ao lado dessas mulheres fundamentais.

Mulheres negras são centrais na produção da luta cotidiana contra a violência de Estado, mobilizando os territórios e fazendo a denúncia e acompanhando as vítimas.
IDMJR: Como você analisa a ação histórica das mulheres negras, marcos simbólicos, ganhos, perdas e nesse momento os muitos retrocessos?
Gláucia Marinho: As mulheres negras são precursoras das mais diversas lutas. Somos herdeiras de uma estratégia de resistência e sobrevivência, desenvolvidas ao longo do tempo, que mesmo diante de toda brutalidade inimaginável e desumanização, que visavam a nossa eliminação, não sucumbimos. Estamos vivas. E não foi a qualquer custo e de qualquer forma, a ética, a solidariedade e a não-discriminação sempre foram orientadores da nossa atuação. Sempre soubemos que a nossa liberdade só faria sentido se fosse coletiva, que nossa fome só será saciada quando todos puderem comer. E sempre com alegria, cuidado e afeto. Um exemplo que ilustra bem isso são as casas de angu, as tias baianas, os terreiros que a partir do culto à ancestralidade, do alimento e da música restituíram a nossa dignidade, enfrentado processos de marginalização e criminalização. São as mulheres negras que estão na linha de frente na luta contra a violência estatal, organizadas em coletivos de mães e familiares de vítimas de violência, promovendo ações de memória, justiça e reparação; se levantando contra os abusos nas filas de visitantes dos espaços de privação de liberdade e contra qualquer violência perpetrada por um agente de Estado. São elas que, nas favelas, ao perceberem uma violação gritam pelas janelas para inibir a ação dos policiais e estão produzindo informações e análises que nos auxiliam a resgatar tudo que nos foi usurpado e enfrentar as violências sofridas. Todos os tempos são marcados por diferentes desafios, enquanto a trégua não vem, seguimos em luta para transformar o mundo até porque, parafraseando Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
IDMJR: Pensamos a Justiça Racial como processos de enfrentamento às desigualdades raciais, sendo assim acreditamos que essa justiça tem sido efetivada pelos movimentos sociais predominantemente. A Justiça Racial em medidas práticas seriam ações políticas e também judiciais utilizadas como reparação de violações de direitos históricas aos negros, povos originários e empobrecidos. Enquanto Iniciativa entendemos que o dispositivo da memória e ações produzidas de garantia da nossa memória produz justiça racial. O que significa Justiça Racial e como ela é percebida na prática da ação de luta para você?
Gláucia Marinho: Também entendo justiça racial como fim das desigualdades contra os negros e negras, indígenas e todos os oprimidos ou subalternizados, o que dialoga com Achille Mbembe e o devir negro do mundo. Restituir e disputar a memória é umas das formas de produzir justiça e possibilita rompimentos de ciclos de dominação. Isso é muito forte na nossa história. Reza a lenda, que as pessoas que foram escravizadas no continente africano antes de embarcar nos navios negreiros passavam por árvores do esquecimento. Eu já vi alguns historiadores divergirem dessa história, enfim (…) pra mim o que é interessante analisar nesse exemplo é a dicotomia produzida partir das categorias lembrança e esquecimento para a usurpação da vida e subjugação do outro. Temos aí: lembrar/liberdade versus esquecer/escravidão. Por isso, a luta pela memória é resistência e essa é a fronteira de luta dos movimentos sociais. Lembramos para não esquecermos, lembramos também para evitar que se repita a violações. Além da memória, a justiça racial só será efetivada com a dissolução ou “revisão” de estruturas que nos violentam. O judiciário, por exemplo, é possível ter vitórias? Sim, é possível conquistas pontuais. No entanto, se formos analisarmos o todo, estamos empilhando derrotas. Por fim, a justiça racial só será efetivada integralmente com uma critica radical ao capitalismo, suas praticas e produção de subjetividades. Não há justiça em um sistema que gera violências e desigualdades.
“Por fim, a justiça racial só será efetivada integralmente com uma critica radical ao capitalismo, suas praticas e produção de subjetividades. Não há justiça em um sistema que gera violências e desigualdades”.
Gláucia Marinho
IDMJR: O assassinato de mulheres negras aumentou de forma absurda e na baixada fluminense as áreas dominadas por milícia também cresce tornando alguns casos de feminicídio diretamente ligados esses grupos. No boletim de feminicídio e segurança pública identificamos essas novas realidades que se estruturam no racismo histórico e no capitalismo sendo reinventado. Como você vê essas estruturas se formando atualmente e como elas impactam na luta dentro dos territórios?
Gláucia Marinho: As miliciais são um problema antigo, nasceram e se expandiram com a participação de agentes estatais e apoio de políticos. Tem uma rede econômica complexa atuando em diferentes ramos. Impossibilitando o acesso ao direito à cidade, segurança, transporte, moradia e lazer. Para mim, o aumento dos homicídios de mulheres em áreas controladas pela milícia está ligada a uma característica desses grupos de gerência da vida e conduta das pessoas. Além de racismo e dos interesses econômicos, o machismo orienta as práticas desses grupos. Então, as mulheres também passam a ser alvo da violência armada perpetuada por eles. Principalmente aquelas que não se submetem aos desmandos desses grupos criminosos. O crescimento das milícias traz muitas questões sobre o que chamávamos de territórios de exceção ou cidade formal, a milícia põem fim a esses limites, se apropriando integralmente de tudo e obrigando que as pessoas participem dos seus esquemas. Eles criam situações, apresentam respostas e impedem outras saídas. É terrível, porque tentam sufocar tudo que nasce fora do seu controle.
IDMJR: Você já ouviu falar de feminicídio político? Qual o entendimento seu entendimento ? E por último porque grande parte da sociedade não se engajam nas lutas contra a Violência do Estado?
Gláucia Marinho: Entendo feminicídio politico com uma ação de eliminação de mulheres devido a sua atuação politica, como ocorreu com a Marielle, a Irmã Dorothy e tantas outras mulheres que foram assassinadas brutalmente em decorrência da sua condição de mulher e por causa das lutas que vocalizam. Sobre o engajamento, o racismo, o capitalismo, roubam nossos sonhos e isso acaba desmobilizando a luta. Muita gente acredita que é impossível vencer a besta. As instituições são apresentadas como se existissem mesmo antes da existência do homem. Mas também não acho que vivemos uma desmobilização total, tem muita gente por aí envolvida em lutas, somando nas fileiras contra o desmonte da saúde e educação pública; contra as reformas que precarizam a vida dos trabalhadores e aposentados; pelo reconhecimento de direitos de grupos historicamente vulnerabilizados; contra a violência policial e nos espaços de privação de liberdade; para que tenhamos alimentos de qualidade sem veneno na nossa mesa; que lutam conta o descaso do Estado brasileiro com a urbanização das cidades; pela adoção de políticas de distribuição de terras para trabalhadores rurais; pela demarcação e titulação de terras indígenas e quilombola; pelo reconhecimento de comunidades tradicionais; contra legislações que permitem a devastação da floresta amazônica, por exemplo. Somos muitos, o problema é o Estado brasileiro que não dá um minuto de paz e é muito comprometido com o seu propósito destruição. O que precisamos é criar mais solidariedade entre nós e não hierarquizar as lutas.
“As mulheres negras são precursoras das mais diversas lutas. Somos herdeiras de uma estratégia de resistência e sobrevivência, desenvolvidas ao longo do tempo, que mesmo diante de toda brutalidade inimaginável e desumanização, que visavam a nossa eliminação, não sucumbimos”.
Gláucia Marinho
Sobre a mobilização social contra a violência policial, no cárcere e desaparecimentos forçados talvez a impressão que parece é que elas não ecoam na sociedade, mesmo com todas as evidências de abusos, tortura e mortes com a participação de agentes de Estado, por causa do racismo. Se vendeu a ideia que o maior problema brasileiro é a segurança pública e que nós, negros, somos os geradores de violência. Então para acabar com a violência o plano é nos prender ou matar. E, infelizmente, muita gente acredita nisso…
Também é importante levar em consideração que contado o tempo de escravidão e ditaduras que passamos no Brasil, vivemos mais tempos presos, silenciados e submetidos a violência que em “liberdade”, por isso, imagino, que ainda haja medo, e é justificável.
IDMJR: Recentemente a Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial junto com outras organizações e movimentos sociais conseguiram uma vitória processual a partir da ADPF 635, quando o ministro do STF (Edson Fachin) deu a liminar suspendendo as operações policiais em favelas no período de Covid 19. Como vocês avaliam o impacto dessas operações policiais nas favelas e bairros de periferia? E como isso impacta na militância e trabalho de vocês nesses territórios?
Gláucia Marinho: Foi uma decisão histórica. A paralisação das operações num contexto de pandemia é uma questão humanitária. Como as pessoas poderiam se proteger minimamente em meio a tiroteios? As operações impedem o funcionamento dos postos de saúde, o ir e vir com segurança, instalam o terror, já estamos em meio a uma pandemia. A crise sanitária aguda a crise econômica e outros problemas sociais, para diminuir o quadro de violência, movimentos sociais e coletivos organizaram ações de apoio aos afetados pelo coronavírus, várias dessas ações foram interrompidas por causa das operações. E ainda, o Brasil é o segundo país mais afetado do mundo, com vários problemas estruturais que dificultam a prevenção ao vírus e o terror provocado pelas operações afetam a saúde dos moradores de favelas. As operações policiais são umas das maiores expressões da política de morte adotada pelo Estado brasileiro. Áreas inteiras são sitiadas, submetida a todo tipo imaginável de violência física e psicológica. Casas são invadidas sem mandatos, são comuns relatos de roubos, xingamentos e ameaças por parte dos PMs. A polícia brasileira é a mais letal do mundo. O objetivo é eliminar a população negra. Por isso, precisamos lutar pelo fim das operações policiais.
IDMJR: Como você percebe a presença e atuação dos homens na construção de ação e parceria na luta em defesa da vida das mulheres?
Gláucia Marinho: Importantíssimo, a violência é masculina. Tudo que discutidos até aqui, nessa entrevista, tem origem também na masculinidade. E até hoje eles gozam da prerrogativa do uso da violência e ainda a usam para reforçar sua virilidade. A luta possibilita os homens reflitam sobre esses marcadores e seu papel nas produções violência e a partir do encontro com as mulheres e das reivindicações das mulheres apoiar ações para a superação das violências que eles são geradores. Ninguém se liberta sozinho.
Nós Mulheres Negras, Latinas, Periféricas, Faveladas, Suburbanas, somos a voz e a ação que reinventa as estruturas de opressão e transforma a dor, as ausências e as injustiças em luta.