
Por Fransérgio Goulart e Giselle Florentino
Desaparecimentos Forçados: um resgate histórico.
No Brasil o aprisionamento e a retirada forçosa de corpos de seus territórios perpassam toda a formação social e econômica brasileira desde o tempo de colonização até o atual período dito democrático. O sistema colonial deixou um rastro de extermínio de povos originários, escravização, pilhagem, expulsões, expropriações, doutrinação cristã, violência e espoliação por onde passou as expedições ‘civilizatórias’.
Logo, a execução de desaparecimento forçados não origina-se apenas no período da ditadura empresarial-militar na América Latina, e sim, ao longo de todo brutal processo de colonização do continente.
Os métodos de desaparecimentos forçados de corpos foram utilizados constantemente como forma de terror do Estado em diferentes tempos históricos e sob distintas condições. Entretanto, ressalta-se que nos dramáticos anos de ditadura empresarial-militar na América Latina, o desaparecimento forçado de pessoas foi empregado como instrumento político de amplo cerceamento de liberdade e cassação de direitos políticos. O caráter de privação de liberdade através da captura, sequestro, tortura, mutilação e outros métodos torpes de desumanização e controle de corpos durante a vigência do período ditatorial brasileiro deixaram marcas latentes na memória social e na atuação política da sociedade até os dias atuais.

Desaparecimentos Forçados: a realidade cotidiana da Baixada Fluminense
Ao longo dos anos 2000, quase 87 mil pessoas desapareceram no estado do Rio de Janeiro. Apenas em 2019, o Instituto de Segurança Pública – ISP registrou 4.768 casos de desaparecimento em todo o estado. Somente no ano passado, 1.256 pessoas desapareceram na Baixada Fluminense, segundo os dados do ISP. Entretanto, os dados oficiais não representam a realidade brutal da Baixada, dada a recorrente problemática da subnotificação nos casos de homicídios e desaparecimentos. Haja vista, que aproximadamente 60% do total de pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro ocorrem na Baixada Fluminense.
Sempre necessários ressaltar que a metodologia dos dados oficiais não engloba os casos de desaparecimentos forçados dificultando ainda mais a possibilidade de quantificar o real número de pessoas vítimas da violência urbana que são executadas pelo Estado cotidianamente nas favelas e periferias.
A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial recebe informações diárias de jovens que sofrem ou já sofreram esse tipo de violação. Na maioria dos casos, os desaparecimentos forçados ocorrem com o envolvimento da própria polícia militar, polícia civil e/ou das milícias que atuam nos territórios. Atualmente, as áreas com maior número de denúncias e depoimentos de desaparecimentos forçados são as áreas de controle de milícias, que de forma arbitrária e violenta encarceram, assassinam e desaparecem com os corpos dessas pessoas. Os corpos são descartados em cemitérios clandestinos, rodovias, sítios ou rios para impedir a identificação das vítimas.
CNJ: a normatização da ocultação de cadáveres
Diante deste traço histórico de desaparecimentos forçados no Brasil, em especial na Baixada Fluminense, como ficaria a localização de pessoas desaparecidas com a implementação da absurda portaria conjunta assinada pelo Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Justiça no dia 30 de março?
A portaria publicada por estas instituições propiciam que durante o contexto do COVID-19, fica autorizado para os estabelecimentos de saúde e na ausência de familiares ou pessoas conhecidas do falecido, enviar os corpos direto para cemitérios para realizarem cremações e sepultamentos sem a necessidade da devida certidão civil de óbito, precisando apenas da declaração do óbito. Sendo esta resolução direcionada a um perfil específico, voltada a falecimentos com “ausência de familiares ou de pessoas conhecidas ou em razão de exigência de saúde pública”.

Tal mecanismo posto em prática resultará em um acelerado crescimento de corpos não identificados, um verdadeiro amontoado de corpos sem nomes, histórias ou memórias. É mais uma forma da máquina de violação do Estado por em prática o epistemicídio* do povo negro – o paulatino apagamento histórico das vidas. Este processo se dará sob o argumento de proteção sanitária ao Covid-19, sem nenhum tipo de comprovação, provas ou registros.
Para nós, da IDMJR, a portaria seria mais um atestado de como o Estado – principalmente em suas formas de Polícia, Milícia e Tráfico, potencializa a sua política de morte a partir da técnica de ocultação de cadáveres. Pois, corrobora para construção de meios ainda mais refinados para dificultar a identificação de desaparecidos.
Ressalta-se que Estado não reconhece a categoria desaparecimento forçados como uma violação e nem como indicador estatístico de violência urbana. Somada a ausência de uma política de localização de desaparecimentos forçados de forma séria e articulada, a perspectiva futura é de um cenário de negação histórica de uma nação que não identifica seus mortos e nem atua no enfrentamento ao desaparecimentos forçados, a morte decorrente da pandemia do Covid-19 sob a portaria da CNJ apenas reforça a ocultação de corpos que o Estado já promove.
Mães e Familiares: a incessante busca pela identificação de corpos
A implementação da desobrigatoriedade de não identificação dos corpos também impacta na tentativa posterior de encontro de cadáveres. Haja vista, que no período de até 60 dias quaisquer pessoa podem tentar localizar um ente ou conhecido falecido. Entretanto, a portaria não exige obrigatoriedade na identificação para gerar as declarações de óbito, seja através de fotos, características físicas, sinais aparentes do óbito, idade e outras questões. Logo, sem nenhum condicionante obrigatório de comprovação, resultando em processos mais frágeis em quaisquer investigações.
O argumento de morte devido ao o Covid-19 será uma ferramenta utilizada pelo Estado para não dar informações e esclarecimentos públicos sob as circunstâncias das mortes, dado o histórico de um Estado onde os desaparecimentos, em especial os desaparecimentos forçados não possuem nem um sistema oficial de dados. O que temos são dados produzidos por organizações sociais, como a própria IDMJR, sobre corpos desaparecidos e cemitérios clandestinos a partir de denúncias, depoimentos e relatos de moradores.
O impacto da não identificação de corpos no sistema prisional
Um outro ponto a se destacar é o impacto da portaria no sistema prisional, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária-SEAP com todo seu histórico de violações, execuções e tortura utilizando esse novo dispositivo para declaração de óbitos sem a certidão civil de óbito. A falta de organização histórica, que na nossa avaliação é como se dá a política institucional, favorecerá a perda completa de dados sobre a morte de presos. Pois, este corpo será enterrado sem nenhuma identificação sob o argumento de contaminação do COVID-19 sem nenhuma comprovação, propiciando um número de desaparecimentos vultosos, mais uma vez camuflando a violência do Estado e seu sistema histórico de ocultação de corpos.
Essa portaria permitirá que grupos inteiros de presos possam “desaparecer” sem registro civil de óbito, potencializando ainda mais a prática de tortura e execuções no sistema prisional.
Por fim, essa portaria colocaria um ponto final nas investigações e apurações de desaparecimentos com prazo estipulado. Pois, estabelece que as certidões de óbito sejam feitas em até 60 dias contando da data de falecimento, ou seja, passado esse tempo não teríamos como identificar qualquer pessoa e o Estado terá consentimento judicial para cremar esse corpo.
O Estado como uma máquina de violação para a população negra
Exigimos que essa portaria seja extinta imediatamente por entender que o Estado tem a obrigação, mesmo em contexto de emergência sanitária, produzir uma política sanitária adequada a partir dos óbitos do COVID-19.

Caso contrário, fica evidente que o Estado é uma máquina de produção da morte e da dor para a população negra favelada e periférica. Afinal, até quando falamos do momento de exercer o último direito social de um ciclo de vida que é o acesso ao atestado de óbito, tão valioso para uma mãe ou familiar que tenha tido seu filho desaparecido forçadamente, o Estado Racista Brasileiro não concede essa garantia mínima.
Portanto, com o sepultamento e cremação de corpos sem a devida certidão civil de óbito devido a pandemia e somado aos históricos casos de desaparecimentos forçados fruto da violência do Estado temos um cenário futuro ainda mais profundo de corpos não identificados reafirmando o racismo institucional fundante desta sociedade e reproduzido pelas instituições que deveriam zelar pela garantia de direitos sociais e políticos da população.
Nesse sentido, avaliamos que a resolução em questão, que abre a possibilidade de sepultamento e cremação de pessoas na condição de identificáveis não reclamados e não identificadas sem a emissão da certificação do óbito, não cria, em contrapartida, mecanismos eficazes de garantia de registros que tornem possíveis a identificação dos mortos tanto para fins epidemiológico, para a produção de memória do contexto de pandemia e para respeito e garantia dos direitos dos mortos e de seus familiares.
A compreensão da garantia do direito à memória perpassa o primado do não esquecimento e volta-se para uma perspectiva intergeracional, de um futuro diferente, para que os atos traumáticos não mais se repitam. Além disso, objetiva-se combater os resquícios do sistema escravista que ainda resistem, nas dimensões materiais e simbólicas.
[*] A IDMJR compreende a questão do epistemicídio como um apagamento paulatino do conhecimento e da construção de memória do povo negro. A invisibilidade induzida pela branquitude para impedir a transmissão da ancestralidade e das memórias de lutas sociais protagonizados por corpos pretos. Entendemos que o não registo civil de óbito contribui como instrumento para o apagamento histórico de uma vida negra e a negação de qualquer contribuição social que este corpo negro proporcionou durante sua vida.