
por Monique Rodrigues
No último dia 31 de Março de 2022, quinta-feira, familiares vítimas da chacina da Baixada reuniram-se na praça Nossa Senhora da Conceição, em Queimados, para lembrar e homenagear seus entes queridos no que completou 17 anos da chacina que devastou famílias e encerrou a vida de 29 pessoas.
Silvana Azevedo, irmã de uma das vítimas, Renato, com 29 anos na época, foi a responsável pelo ato que reuniu irmãs, mães, tias e apoiadores de uma luta pelo direito à memória, que é incansável para essas pessoas.

Reuniram-se a Adriana, Mãe do Julinho, Cátia irmã do Marcos Vinícius e prima do Francisco, Célia esposa do José Augusto como o grupo de familiares que juntas passaram essa manhã de memórias difíceis e dolorosas que completa mais um ano.
“Parece que foi ontem, para a gente, familiares, a dor não passa nunca.” (Silvana Azevedo, irmã de Renato Azevedo, vítima da Chacina da Baixada).
Na Baixada Fluminense a condição da violência policial se organiza na estrutura do Estado e reproduz uma série de outras violações contra a vida no cotidiano desses territórios. A IDMJR acompanhou esse ato e conversou com os familiares presentes na tentativa de refletir a atuação ao enfrentamento à violência de Estado na Baixada Fluminense, pensando os temas da violência policial, a invisibilidade da Baixada Fluminense e a abolição das polícias e das prisões, como eixos norteadores para esses enfrentamentos.
IDMJR: Como lidar com a ausência de seu ente, passados 17 anos? Como você ressignificou esta dor em luta?
Adriana: É uma coisa que a gente não espera, e até hoje eu não me recuperei, essa semana mesmo eu ainda estou meia caidinha. Na segunda feira eu estava pensando que depois de 17 anos, é a primeira vez que cai na quinta feira, que foi o dia que aconteceu, já caiu no domingo, sexta. O Julinho era um menino alegre, brincalhão, era bonito, trabalhava com o padrasto e estudava a noite. Eu tenho 3 filhos mas o Julinho era o mais parecido comigo, ele tinha um jeitinho que cativava as pessoas, o jeito carinhoso. Ele era o meu primeiro filho, com ele veio o meu comecinho de vida, eu tive ele com 16 anos, então nele eu depositei tudo e me tiraram isso.
Silvana: É, hoje é a primeira quinta feira, como no dia daquela quinta feira, do 31 de Março.
Adriana: Mãe nunca esquece, acho que ninguém nunca observou isso, mas eu fiquei ali pensando… Eu nunca mais me recuperei, parece que arrancou um órgão do seu corpo. Fico feliz porque tenho outros filhos, mas está faltando um pedacinho de mim. Eu fico pensando se o Julinho tivesse aqui agora, tava com 33 anos, eu era avó, como é que seria minha vida agora? Me tiraram isso, às vezes eu quero lembrar a voz dele. Tiraram o meu futuro.
Silvana: E a dor também é de familiares, eu sou irmã e sinto a mesma dor como se fosse mãe do Renato. A gente foi criado sozinhos, meus pais faleceram e ele cuidava de mim e eu dele. Era como se eu fosse mãe dele e ele meu pai. Então eu estou nessa luta desde do dia 31 de Março de 2005, que hoje faz 17 anos. É a mesma dor e como parece que o tempo não passou, eu só sinto que o tempo passou me olhando no espelho.
Cátia: A dor e a tristeza continuam, a gente tenta esquecer um pouco mas nunca esquece. Quando a gente olha para as fotos e lembra, na época ele tinha 15 anos, como ele estaria hoje, se teria filhos, eles tiraram esse direito do meu irmão. Meu primo deixou um bebezinho, que hoje tem 17 anos, como seria ele como pai? Ele estava todo feliz com o primeiro filho. Só fica a dor, a cada ano que passa, só aumenta a violência. Cada pessoa morta que a gente vê é uma lembrança deles, a gente fica imaginando que os nossos estavam assim. E por nada, sem ter feito nada. Sem direito de defesa. Eram pessoas que queriam criar seus filhos, estudar, ter uma vida melhor. Eles julgaram e condenaram nossa família toda quando mataram meu irmão e meu primo. Minha mãe teve uma diabete emocional e faleceu, assim como várias pessoas de familiares.
IDMJR: O que mudou com relação a violência policial de 2005 para 2022?
Silvana: Cada vez tá pior. Se há 17 anos atrás aconteceu isso, hoje está acontecendo pior ainda. A gente quer tanta coisa, quer paz, quer o fim da violência, eu acho que teve um começo mas o fim eu vejo que é impossível. A gente luta para nossa dor não cair no esquecimento, para que outras mães não sinta nossa dor, não passe pelo o que a gente passa mas vê que cada dia é mais e mais mães chorando.
Adriana: As coisas estão só piorando. Você já viu as coisas que aconteceram depois disso? Eu só vejo piorar também. Depois de tudo isso que a gente passou, mesmo lutando para viver em um mundo melhor, a gente continua vendo as mesmas coisas, muitas mães chorando e sofrendo, que a gente tá vendo que eles não estão ouvindo a gente.
Cátia: Não mudou nada, eu acho que só piorou mesmo. É cada coisa que a gente vê acontecer…
“Até agora nada mudou, pelo contrário, a realidade aqui só piora.”(familiar vítima da Chacina da Baixada)
IDMJR: A IDMJR acredita que a Abolição da Polícia é um caminho a se trilhar, o que você acha?
Silvana: Eu não acredito que isso possa acontecer, a gente luta para que tenha paz mas eu não acredito que terá fim não. Acreditar que vai ter um fim é se iludir, a realidade é muito pior do que a gente vê.
Adriana: Eu estou desacreditada de tudo, não acredito em mais nada mesmo.
Regina: A maior parte da violência sempre vem deles. Você vê nas comunidades o primeiro tiro de onde que vem? Eles alegam que sempre é do traficante, mas se você for ver mesmo, o primeiro tiro vem deles. Vão invadir atirando e quem tá na frente é que paga as consequências com a vida. Quantos pais e mães choraram? Olha o caso da Ágatha, olha aquela moça que perdeu o neném.
“Na maioria das vezes quando acontece uma bala perdida vem dos PM’s. Eu acredito no fim da polícia, eles tiram a vida e ainda coagem a gente que é morador. Intimidam a gente e a gente fica com medo.“(Regina, familiar vítima da Chacina da Baixada)
Cátia: Olha para ser sincera não, porque não é só a polícia, porque tem muitas coisas, a começar pelos políticos porque são eles que sustentam isso tudo, se não fosse esses políticos a violência e a criminalidade não estava aí. Então se começar por Brasília eu acho que dá certo.
A IDMJR a partir das respostas sobre o tema Abolição das Polícias com os familiares vítimas da Chacina, queremos apontar que é de suma importância pautar o que é o Estado? O outro ponto que destacamos é que o Estado arrancou seus familiares e os sonhos destes familiares, e por fim os mesmos apontam as polícias como os principais autores das violências, logo pensar em abolir é possível.
A praça Nossa Senhora da Conceição, onde esses familiares ficaram por cerca de 5 horas, manifestando suas dores e indignação, fica situada no centro urbano e comercial de Queimados e por ali circula a população de vários bairros. Por diversos momentos as pessoas passavam, olhavam, paravam e algumas delas narravam histórias de violência policial e assassinato de jovens no seu bairro e até na própria família, que assim como os da chacina, são invisibilizados ao passar do tempo.
O ato foi encerrado com o nome de todas as 29 vítimas sendo lidas e relembradas, com resposta de PRESENTES!! São ele: Renato Azevedo dos Santos, João da Costa, Marcos Vinicíus Cipriano, Marcelo J. do Nascimento, Leonardo P. da Silva, Bruno de Souza, Fábio Vasconcelos, Douglas Brasil, William dos Santos, Rafael da Silva, Robson Albino, Callupe Ferreira, Wagner da SIlva, Elizabeth de Oliveira, Kenia Modesto, Jonas de Lima Silva, Felipe Carlos, Francisco Y. da Silva, Marcos Aurélio Alves, Sandro Mome, Luis Henrique, César de S. da Penha, Luis Jorge do Nascimento, Jailton da Silva, Leonardo da Silva, José Augusto, Luciano de Souza, Luciano de Souza e Denilson de Souza.
A IDMJR agradece a confiança dos familiares que nos cederam esta entrevista e reafirma a importância de fortalecer a luta dentro dos territórios da Baixada Fluminense, assim como a urgência nos debates sobre violência de Estado, racismo, abolição das polícias e das prisões como pautas fundamentais para o enfrentamento no cotidiano destes territórios.