
Por Monique Cruz¹ e Elinton Fabio Romão²
A “Polícia e racismo”, assim como “racismo-estrutural”, “racismo-institucional”, “violência-vírgula-negros-vírgula-pobres-vírgula-periféricos” se tornaram jargões a serem utilizados para legitimar o que é escrito e/ou falado de forma, a muitas vezes, esconder o racismo basilar da sociedade brasileira e, portanto, do pensamento e da prática de quem escreve e/ou fala, como demonstrou Paulo César Ramos ao discutir o livro “Desmilitarize” de Luiz Eduardo Soares. Crítica que, em linhas gerais, afirma que Luiz Eduardo – que é uma referência sobre o tema Segurança Pública –, citou Marielle Franco, escreveu em uma linha ou outra a sentença “racismo estrutural”, e só. Ainda não lemos o livros, mas usamos o caso exemplar, para ilustrar o que tem sido uma prática bastante frequente em espaços acadêmicos e de militância.

Fato é que produzir esquecimento em relação a base social e histórica da segurança pública e da atuação de seus agentes, não é especificidade do autor de “Desmilitarize”, e tão pouco pode ser uma prática considerada apenas sob o viés de uma ‘eventual’ individualidade racista dos intelectuais brasileiros. Trata-se justamente do caráter estrutural do racismo. Estrutural porque é processo histórico, arraigado e retroalimentado, e o mais importante, que estrutura o poder em sociedades como a nossa, isso nos ensinou Foucault.
Nos incluímos no grupo de intelectuais que entende que falar de polícia e da sua atuação na contemporaneidade é necessariamente falar de racismo. Mas será que todes nós compreendemos como funciona? Será que sabemos por que falar de polícia é falar de racismo? Será que é por que os policiais são racistas? Antes fosse apenas por isso. Como dizem as mais velhas: o buraco é mais embaixo.
Tais questões são algumas das bases do que chamamos de genocídio. Que de acordo com o “Aurélio” significa: tentativa de, ou destruição, total ou parcial, de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso; crime contra a humanidade.
Ainda que o genocídio do negro brasileiro não seja reconhecido internacionalmente como crime contra humanidade por questões jurídicas e políticas – que não discutiremos aqui porque gerariam outro artigo –, nós do movimento negro das favelas reconhecemos que toda violência de Estado é parte de um genocídio, desde a violência obstétrica, que afeta muito mais às mulheres e crianças negras, até os tiros disparados por policiais que matam crianças, jovens, homens e mulheres negros.
“Nos incluímos no grupo de intelectuais que entende que falar de polícia e da sua atuação na contemporaneidade é necessariamente falar de racismo”.
(Monique Cruz e Fábio Romão)
Por isso, dizer que a polícia é racista porque mata e prende uma maioria de pessoas negras não explica, por si, uma relação e outra, assim como dizer que a polícia não é racista porque a maioria dos policiais brasileiros são negros, também não explica. Ambas “explicações” são parte do processo genocida que representa a responsabilização do sujeito negro pela violência racial que sofre ou que exerce, isentando assim a branquitude que impera nos cargos de poder, como é na polícia, na política, nas empresas, nos outros cargos públicos etc.
Com isso queremos dizer que quando se agrega a palavra “estrutural” à alguma coisa estamos demonstrando justamente que esta coisa, nesse caso o racismo, cria e mantém estruturas, e nesse contexto, estruturas de poder. Porque ainda que sejam “policiais negros e bandidos negros mantando outras pessoas negras”, como dizem, não somos nós as pessoas negras a determinar as condições da execução e enfrentamento das políticas públicas que geram essas mortes ou das relações político-econômicas que as determinam.
Todo esse processo violento que relaciona diretamente racismo e polícia, é histórico e como tal precisa ser conhecido, discutido, documentado uma vez que se baseia na ideia de inferioridade das pessoas negras construída muito antes de que instituições como a polícia existissem no Brasil.
Na história do mundo, nós pessoas negras, já fomos marcados como “sem alma”, um subterfúgio chancelado pela igreja católica para permitir nossa escravização, que no Brasil durou quase 400 anos. A partir daí, as elites brasileiras descendentes dos brancos colonizadores além de não repararem material e subjetivamente quatro séculos de trabalho, ainda se dedicaram a construir uma nova narrativa para afirmar que aquelas pessoas escravizadas e seus descendentes eram inaptos para o trabalho e que, portanto, ofereceriam perigo.
A criação de sub-cidadanias por meio de um aparato jurídico-policial, das pessoas negras no Brasil, se construiu com o empenho das elites que usaram não só a religião, mas a ciência para acionar um suposto estado de necessidade, ou seja, para criar aquela sensação de que “tudo está tão ruim que necessita de ações drásticas”. Reeditado ao longo da história do Brasil nesses 520 anos, dos quais 400 foram de escravidão.
Foi desse modo que as pessoas negras passaram do trabalho escravo para o subemprego: sem casa, jogada à própria sorte, utilizando conhecimentos ancestrais para criar possibilidades de vida ao sair da senzala para o cortiço, do cortiço para a favela desenhando as cidades nos altos dos morros, nos fundos dos vales, em uma sociedade que fez o pacto social, não pela vida, mas pelo lucro e pela vida de poucos. Um pacto para a garantia da propriedade privada que no Brasil garante a posse da terra, dos meios de comunicação, fatalmente do poder político. Pactos como os de hoje (guardadas as devidas proporções do que diz respeito ao tempo histórico) no qual nos convencem que “a economia não pode parar”.
Nesse “racismo à brasileira” a proteção é para a propriedade privada, consequentemente da vida de quem a detém. Não à toa a sigla de Guarda Real Portuguesa “GRP” ainda está registrada no brasão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), acompanhada dos desenhos de uma coroa (de rei/rainha), de um pé de cana-de-açúcar e um de café. A mesma instituição fundada 1809 para a proteção do latifúndio monocultor e da Coroa Portuguesa que chegara no ano anterior ao Brasil, e que em muitos estados são apenas a estatização dos jagunços/capitães do mato. Ou seja, seu comando vem da casa grande mais o seu corpo formador vem da senzala. Policiar significa, já diria o “Aurélio”: vigiar, em cumprimento de leis ou regulamentos policiais; vigiar, zelar. Reprimir, conter. Dominar-se, conter-se.
“Nesse “racismo à brasileira” a proteção é para a propriedade privada, consequentemente da vida de quem a detém”.
(Monique Cruz e Fábio Romão)
Destaque-se que apesar de suas bases históricas – baseadas na “estatização” da proteção da propriedade privada – a PMERJ existe há pelo menos 200 anos, o que imprime em sua atuação uma série de transformações que, inclusive, serviram para sofisticar sua forma de atuar. Ela não é violenta desde a Ditadura, como insistem alguns intelectuais “da segurança pública”, mas é violenta desde sempre! A diferença é que na ditadura as polícias (não só a militar) foram responsáveis por matar, torturar e desaparecer não só com os descendentes dos escravizados africanos, mas com jovens de classe média brancos enquadrados como comunistas, e isso, muda qualquer estrutura institucional em países como o nosso.
Outra questão que nos move ao pensar sobre o racismo e a polícia em seu papel de vigiar, controlar, reprimir, conter, dominar e matar, é: por que nesse país nunca se quis fazer um pacto pela vida? Talvez porque quem pode morrer, é “o outro”, aquele que não reconhecemos como “nós”, mesmo que esse outro, seja nós. Complexo: nós pessoas negras reproduzimos sentimentos que desejam destruir pessoas como nós, também negras, quando nos diferenciamos delas. Um exemplo concreto: pessoas negras, pessoas LGBTQIA+ e mulheres também ajudaram a eleger Jair Bolsonaro, abertamente racista, misógino, homofóbico etc.
Somos nós, no churrasco da esquina, sem perspectiva de que nossa aglomeração pode matar os nossos (ou a nós mesmos) contaminados por Covid-19, assim como quem pode morrer com um ‘tiro na cabecinha’ chamado de bandido é o jovem negro, que pode ser meu irmão, meu filho, mas que na minha cabeça não será, afinal, meu irmão e meu filho não são como os outros. É como se algo diferenciasse algumas pessoas negras das outras. Um emprego melhor, um nível mais alto de estudo, ou uma namorada branca, a posse de um carro, entre outras coisas. É como se esquecêssemos o velho ditado que todo mundo repete: a noite todos os gatos são pardos. Ou seja, é como se esquecêssemos que uma pessoa negra, morta com um tiro na cabeça em uma favela sempre será fichada pela polícia como traficante.
Não são eles, os brancos, ricos “preocupados com a economia” que estão aglomerados nas ruas sem se preocupar que as pessoas do seu entorno podem não ter água e sabão para lavar as mãos, mas são eles que lucram com o trabalho mal remunerado de quem necessariamente vai ter que trabalhar sob o risco de morrer porque não se pode parar a economia para quem não vai ter respirador no hospital.
O que queremos dizer com tudo isso é que o branco rico proprietário fundador do Estado como o conhecemos nos ensinou a ter medo de nós mesmos, a desejar a morte de um “outro” que na verdade “somos nós”. Mas não é ele que aperta o gatilho no beco, tampouco somos nós que lucramos com a morte ordenada do alto de suas mansões. A estrutura de poder é branca, o poder como diz Nego Bispo é eurocristão (branco, hétero, cis, homem, cristão), mas quem mantém a sociedade, somos nós, mulheres negras, e nesse sentido, relacionar polícia e racismo é mais do que achar que os policiais individualmente são racistas, é entender o papel da instituição das quais fazem parte os policiais que é: manter os 99% de pobres quietos na base da pirâmide para que os 1% possam dormir em paz.
¹ Cria de Manguinhos, membro do Fórum Social de Manguinhos, mestre e doutoranda em Serviço Social pela UFRJ, membra do GPSEM/UFRJ, pesquisadora da Justiça Global.
² Cria da Mangueira, estudante de Geografia da UFF, membro LEMTO/UFF pesquisa temas relacionados a formação socioespacial brasileira, conflito agrário e quilombos.
Desmilitarização, genocídio e esquecimento. Disponível em: https://www.justificando.com/2019/12/03/desmilitarizacao-genocidio-e-esquecimento/ . Acesso em 30 Abr.2020
Michel Foucault, filósofo francês que viveu entre 1926 e 1984. Para informações iniciais sobre sua obra, ver: Michel Foucault. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/michel-foucault.htm. Acesso em 30 Abr.2020.
Aurélio é como ficaram conhecidos os dicionários, especialmente versões escolares muito utilizadas antes da popularização do Google.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016. Disponível para leitura em: https://books.google.com.br/books/about/O_Genoc%C3%ADdio_do_negro_brasileiro.html?id=8KFBDgAAQBAJ&printsec=frontcover&source=kp_read_button&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false.
Para quem tem interesses acadêmicos no tema, ver FLAUZINA, Ana Luisa. Fronteiras raciais do genocídio In: Revista de Direito da Universidade de Brasília. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/article/view/24625.
Poucos estudos foram realizados sobre isso, um deles é o de Jaime P. Ramalho Neto: Farda & “Cor”: um estudo racial nas patentes da polícia militar da Bahia. https://www.scielo.br/pdf/afro/n45/a03n45.pdf