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Por Patrick Mello

No último dia 10 de setembro de 2023 a Folha Universal, jornal virtual e impresso da Igreja Universal do Reino de Deus – IURD lançou uma matéria intitulada: O que você sabe sobre o Conselho Tutelar? Em seu subtítulo trazia a seguinte afirmação: “Há inúmeras razões para colocarmos os holofotes sobre este assunto pois, em outubro, há um dever a ser cumprido”. O texto segue com algumas explicações sobre o papel do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – Rio de Janeiro e dos conselheiros tutelares. Além de contar com uma entrevista com o coordenador do Grupo Arimateia sobre a importância do voto em “pessoas comprometidas com a causa”. 

Todavia, não se trata apenas de uma explanação sobre a atuação dos conselhos tutelares que conta até com um infográfico sobre o processo de eleição do CMDCA-Rio e enfatiza a importância da participação social no funcionamento cotidiano do equipamento público de assistência social. Na verdade, é uma publicação explícita sobre os mecanismos utilizados pela IURD para executar seu projeto político de dominação e hegemonia cristã dentro das esferas institucionais do próprio Estado.

O Grupo Arimateia foi fundado em 2018, ainda em 2020 contava com 28 mil voluntários espalhados por todo o Brasil, o grupo surge com o mesmo objetivo da figura bíblica que dá origem ao seu nome, organizar incidências no Estado para que se cumpram as vontades coletivas dos seguidores da IURD. Segundo o  próprio canal da Folha Universal  José de Arimateia, foi um homem muito importante na época do Senhor Jesus. Sua influência como senador e membro do Sinédrio (Corte Suprema) lhe proporcionou privilégios que não seriam dados a outra pessoa qualquer. Arimateia, por exemplo, teve livre acesso ao governador Pôncio Pilatos para lhe pedir o corpo de Cristo, depois de sua morte na cruz, para que pudesse fazer o seu sepultamento. 

No segundo ano de existência do grupo, em 15 de novembro de 2019  a Folha Universal, lançou um artigo chamado: Conselho Tutelar: é nosso dever participar, explicava o que seria um Conselho Tutelar e seu papel institucional, como é distribuído o órgão no território e o porquê da IURD ter a missão de eleger conselheiros, segundo eles, “com valores e princípios e que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus”. 

Em poucos parágrafos foi completamente minimizada a complexidade da política social executada pelos conselhos tutelares e seu papel regimental em  garantir os direitos da criança e do adolescente – orientados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e criou-se uma argumentação religiosa sobre a necessidade de ocupar a política social do município.

Em 2019, o Ministério Público do Estado abriu uma investigação sobre a eleição do Conselho de Ética dos Conselheiros Tutelares a partir da denúncia sobre a fraude nas votações com o objetivo de ampliar o domínio da Igreja Universal no órgão”. O presidente eleito foi Ahlefeld Marynoni Fernandes, um ex-conselheiro afastado do cargo à época por suspeita de corrupção, além de fazer parte do grupo de WhatsApp Guardiões do Crivella – o então Prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (REP), formado por membros da Igreja e funcionários da prefeitura para impedir denúncias e reportagens que falassem das irregularidades no funcionamento dos equipamentos de saúde da cidade. 

Mas o que isso tem a ver com os Conselhos Tutelares? O que tem a ver com as eleições para conselheiros, o envolvimento das igrejas com milícias e a garantia da continuidade de um projeto imperialista e colonizador que usa o controle de instituições e corpos para fazer a manutenção de privilégios? Mais do que isso, o que este projeto de sociedade em andamento representa quando o Estado permite o compromisso com a eleição em massa de um grupo religioso para um equipamento público capaz de definir os caminhos, mediações e soluções para a defesa dos direitos de crianças e adolescentes?

A questão é que, este retrato não enquadra apenas um projeto pontual de um Prefeito-Bispo na tentativa de entregar o monopólio dos equipamentos e serviços público a uma denominação religiosa, mas a continuidade de um projeto ideológico milenar que une mecanismos da Cristandade aliadas ao Estado para fazer o controle de populações, comunidades e corpos, sempre atrelado ao uso de forças armadas e da violência e coerção.

Segundo a Bíblia, no Evangelho de Marcos cap.16:15-16 diz que antes de Jesus ascender aos céus deixou uma ordem: Vão pelo mundo todo e preguem o evangelho a todas as pessoas. Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado. Após isto, segue a ideia de que o cristianismo precisava ser, a todo custo, espalhado pelo mundo, e os registros da história da humanidade inegavelmente comprovam que a criação e uso de milícias ligadas ao Estado – em qualquer forma de governo – e à ideologia de dominação cristã, tem sido a maior estratégia para controle e subordinação de populações, sempre atrelada a escravização, exploração, vilipêndio, além de ser altamente lucrativo para as Igrejas e as elites.

Neste ano a IDMJRacial, em parceria com o Centro de Tradições Yle Axé Egi Omim idealizou a proposta de um Curso Preparatório Gratuito sobre ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, pensando em dar conta da ausência de diversidade étnico-racial, religiosa, sexual, territorial e de gênero na ocupação de vagas nos Conselhos Tutelares. A intenção era possibilitar o acesso à informação sobre o ECA e principalmente aprofundar as discussões sobre criança e adolescente para preparar os candidatos e candidatas para concorrerem a vagas no Conselho Tutelar. O que não esperávamos era que o resultado inicial de inscrição seria tão desafiador para que colocássemos em prática nosso projeto. 

Das 40 pessoas inscritas para a formação, apenas quatro tiveram suas documentações deferidas na 1ª etapa classificatória das eleições para o Conselho Tutelar na Cidade do Rio de Janeiro. Esta etapa solicitava que as candidaturas enviassem documentos comprobatórios de idoneidade, cartas de intencionalidade, recomendação e comprovação de experiência em trabalhos com crianças e adolescentes. Porém, a burocracia estatal e a linguagem técnica do edital dificultaram a compreensão das solicitações de comprovante e documentações exigidas para a inscrição do processo seletivo, o que impediu principalmente mulheres negras e de Axé, mesmo com ampla experiência no trabalho com crianças e adolescentes e com nível de formação superior ao que o edital previa, tivessem suas inscrições deferidas e a garantia do acesso e continuidade na disputa aos conselhos. 

Um outro obstáculo à participação popular na disputa de conselheiros tutelares é a questão da atual política de segurança pública, recebemos denúncias sobre acordos de grupos de milícias e facções do varejo e tráfico de drogas com as igrejas para as eleições do Conselho Tutelar. Os relatos são de compra de votos, feitos anteriormente ou mesmo no dia das eleições, as famosas “bocas de urna”, fretamento de ônibus e outros meios de transporte para levar moradores aos locais de votação, obrigatoriedade de voto de comunidades inteiras em candidaturas do poder local e até mesmo ameaças de morte a candidatas e candidatos que não estejam de acordo com os comandos locais. Por fim, os acordos são sempre ou para representantes de Igrejas neopentecostais, ou evangélicos, católicos, mas sempre candidatos cristãos.

Durante o último processo eleitoral e até mesmo após eleitos, candidatos ou conselheiros que não representavam estes grupos armados e religiosos específicos sofreram perseguição em seus territórios ou nos conselhos. Foram calúnias e difamações sobre sua conduta e/ou integridade moral, ameaças a partir de suas decisões enquanto conselheiros tutelares e até mesmo ameaças de morte, com direito a processos nos tribunais de milícias e do varejo de tráfico de drogas. O que revela que as eleições dos conselhos tutelares também têm sido utilizadas como estratégia de fortalecimento das milícias e da milicialização dos territórios, sobretudo em áreas de favelas e periferias.

Outro ponto importante é o aspecto orgânico que essa situação carrega, de construir uma ascensão gradual dos conselheiros tutelares a cargos nas casas legislativas, ou de apoio a candidaturas. Principalmente quando se trata das câmaras de vereadores municipais, a tendência é que as eleições dos conselhos, que ocorrem um ano antes das disputas para vereança e prefeituras, sejam um termômetro e ao mesmo tempo um preparo para as campanhas posteriores. 

Os riscos dessas movimentações interferem de diversas formas na vida da população. A consolidação desse processo vai ordenar um controle cristão unificado, e possibilita a criação de uma “santíssima trindade” entre os equipamentos de Estado, as milícias e as igrejas locais; que irão exercer o controle territorial também na perspectiva da liberdade de crença e profissão de fé, principalmente quando se trata de religiões de matrizes africanas, acionadas como inimigas do cristianismo.

O racismo religioso em territórios controlados pelas milícias ganham um aspecto institucionalizado, devido a omissão dos aparelhos públicos em garantir a liberdade religiosa, principalmente para religiões de matrizes africanas. Isso coloca em risco não só as comunidades de terreiro e seus membros, que sofrem ataques sistemáticos de forma direta ou indireta das milícias – que têm relações com os produtores e fiscalizadores legislativos -, como também com os representantes dos conselhos tutelares das áreas; interferindo, assim, diretamente na liberdade de culto de crianças e adolescentes, bem como impede que profissionais exerçam sua função de fazer valer os direitos previstos pelo ECA em conselhos, escolas, postos de saúde e até em suas próprias casas.

Atualmente o Conselho Tutelar já é composto por uma maioria de pessoas brancas, evangélicas, heteronormativas e conservadoras. Pessoas que não possuem letramento racial e nem formação política e de direitos humanos para realizarem atendimentos humanizados e emancipatórios para crianças e adolescentes que estão em vulnerabilidade social. De acordo com o jornal ElPaís, em levantamento feito no ano de 2020, 65% dos conselheiros tutelares do Rio de Janeiro são membros de igrejas Neopentecostais. 

Mas a ocupação dos aparelhos do Estado, em todas as esferas de  poder ( executivo, legislativo e judiciário), são um projeto importante e central para as igrejas neopentecostais desde a década de 1970 (coincidindo com o período de fundação da primeira Igreja Universal do Reino de Deus em 1977), tendo a primeira representação massiva ainda na Assembleia Constituinte de 1987-88, com 30 deputados formando o que atualmente é chamado de Bancada Evangélica, ou a atual Frente Parlamentar Evangélica.

Esta análise temporal nos leva a refletir novamente sobre os diversos grupos criados pela IURD com objetivo de interferir na política pública, como os Gladiadores do Altar – GA, conhecidos por terem ganhado uma charge onde pessoas com roupas da IURD e capacete de soldados romanos matavam com espadas adeptos de religiões de matrizes africanas; a Força Jovem Universal – FJU, que funciona desde a fundação da Igreja em 1977, e já está em mais de 100 países em todo o mundo, responsável pela formação ideológica dos membros jovens; e também recentes denúncias sobre grupos de policiais  que se reúnem em templos da IURD na Zona Sul de São Paulo, o Programa Universal nas Forças Policiais – UFP, que segundo o próprio site da IURD  “presta assistência social e espiritual aos policiais do 16° batalhão de polícia militar metropolitana, na sede da Universal de Bonfiglioli, zona oeste da capital paulista”. Segundo um ex-militar que saiu da corporação em 2015, “O verdadeiro objetivo é criar um laço entre a corporação, seus membros e aquele local (os templos)“.

A IDMJR tem acompanhado a atuação da Igreja Universal do Reino de Deus, seja em suas capilaridades nas casas legislativas (em especial a ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), na execução de política pública do Poder Executivo Estadual, como a implementação de políticas públicas para mulheres, realizado pela IURD em São Paulo e até mesmo na atuação das eleições ao Conselho Tutelar  e suas intervenções com formação ideológica ou articulações com grupos para perseguirem comunidades de terreiro nos territórios. 

O EMLER – Mecanismo Especializado para Promover a Justiça Racial e a Igualdade na Aplicação da Lei da ONU fará uma visita ao Brasil em Novembro de 2023 e nós, em parceria com o Centro de Tradições Ylê Asé Egi Omim, estamos construindo um relatório sobre racismo religioso onde explicitamos, também, o risco que essas comunidades têm sofrido a décadas com essas movimentações, mas resistindo a cada investida arbitrária, desonesta, violenta e criminosa que tem sido permitida a partir da omissão do Estado Brasileiro.

Por fim, compreendemos e reafirmamos que a disputa nos conselhos tutelares, assim como em outros cargos públicos e dos poderes legislativo, executivo ou judiciário do Estado pelas IURD, são reflexo de uma estratégia secular onde as igrejas e o Estado utilizam da fé, da moral e da violência contra territórios e populações. Fazendo a manutenção do controle, da retirada dos direitos básicos e do direito à vida, em especial das populações negras e periféricas, desde a infância.

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