
Por Giselle Florentino e Fransérgio Goulart
Meu sonho?
É estudar, ter uma casa, uma família
Se eu fosse mágico?
Não existia droga, nem fome e nem polícia
(Racionais Mc’s – Mágico de Oz)
A IDMJR comunga política e ideologicamente das teorias críticas e, por isso, partimos da premissa que a prática é critério da verdade. Então, para uma organização declaradamente abolicionista policial e prisional, não podemos fomentar e acreditar que a sanha punitivista, seja ela em casos isolados ou coletivos, possa resultar em uma sociedade mais justa e igualitária. E por que estamos trazendo essa reflexão?

Nesta semana, o Ministério Público do Rio de Janeiro – MPRJ, indiciou dois policiais civis, um por fraude processual e o outro por homicídio doloso na Chacina do Jacarezinho. Após essa comunicação na grande mídia, parte de organizações de direitos humanos que se colocam no campo abolicionista, começaram a celebrar isto como uma vitória das favelas e periferias. Mas será que é realmente um avanço?
Ouvimos continuamente a máxima:
“Diante do que é o MPRJ foi uma vitória sim, um início.”
“Nossa incidência colaborou para este resultado.”
Somos contrários à responsabilização dos indivíduos envolvidos na maior chacina do Rio de Janeiro? Não!
Porém, precisamos ressaltar um determinante importantíssimo dessa atuação do MPRJ, não podemos acreditar na promoção de justiça social a partir do punitivismo individual. Afinal, a cadeia de comando da instituição policial segue intacta com a decisão do indiciamento de apenas dois agentes de segurança pública. Enquanto, a própria Polícia Civil, que definiu as diretrizes políticas e operacionais da execução da Chacina do Jacarezinho, seguem ilesas e sem arcar com a responsabilização do assassinato de 29 pessoas. Portanto, precisamos fazer o enfrentamento estrutural ao racismo institucional que promove cotidianamente o genocídio da população negra e pobre em favelas e periferias.
O MPRJ possui o papel constitucional de fazer o controle das polícias e não de investigação ou resolução de casos, mas com apoio da mídia e até de parte das organizações de direitos humanos construiu rapidamente neste final de semana a narrativa “que a justiça está sendo feita devido ao indiciamento de dois policiais”.
Trata-se do fortalecimento da lógica de “policiais bons e policiais maus”, responsabilizando individualmente a atuação de policiais que foram orientados justamente em diretrizes de uma política de segurança pública baseada na produção de morte.
Na realidade, sabemos muito bem que não trata-se de uma “laranja podre no cesto”, mas de um projeto estatal histórico de produção de morte e encarceramento em massa da população negra e pobre.
A Polícia foi fundada com uma função social bastante específica: o braço armado e repressivo do Estado que atua para a manutenção da ordem burguesa e a proteção do caráter inviolável da propriedade privada.
A polícia está a serviço da dominação capitalista e historicamente utiliza a violência como instrumento repressivo e de coerção contra os trabalhadores/as, contra a juventude, contra os movimentos sociais e sobretudo contra a população negra. Estamos falando de uma instituição do Estado que invade casas nas favelas e periferias, humilha trabalhadores dentro de suas próprias residências, realiza confrontos com armas de guerras nas ruas – muitas vezes durante horário escolar, que utiliza helicóptero como plataforma de tiros, que assassina e desaparece com corpos, uma instituição programada para gerar encarceramento em massa e promover o genocídio cotidiano do povo negro.
O judiciário brasileiro e toda sua seletividade brasileiro impede que determinadas violações sejam apuradas, onde o testemunho policial em detrimento de todas as outras provas, assim como a dificuldade no acesso ao aparelho jurisdicional e a demora procedimental, cerceiam os direitos de inúmeras vítimas dessa violência institucional.
Pachukanis (19) mostra que Estado e Direito possuem um caráter de classe e estão ligados ao processo da exploração do trabalho. E que o Estado e Direito são instrumentos de domínio classista nesta sociedade.O Estado não é uma imposição divina aos homens nem é o resultado de um pacto ou contrato social, mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o todo social.
O Direito não nasce espontaneamente dessas relações, mas é posto pela vontade. O problema que se verifica é que tal vontade é somente aquela dos que possuem o poder estatal, ou seja, a vontade da classe dominante. O Direito torna-se a base de legitimação em que racionaliza as ações do Estado, inclusive fornecendo o princípio da razão do Estado, mesmo em casos de exercício puramente de ações violentas.
Por isso não é possível pensar o Direito apartado dos anseios do próprio Estado, o sistema de justiça que legitima a execução de um projeto político de Estado. E no caso brasileiro, um estado racista, genocida, elitista, patriarcal, cristão e heteronormativo.
A criminalidade só existe porque há participação direta no Estado e o sistema de justiça brasileito é conivente com a produção de morte fruto de uma política de segurança pública racista. Por isso, precisamos enfrentar a sanha das lógicas punitivistas individuais que apenas resultam em encarceramento em massa e nem arranham a hegemonia de poder da branquitude.
O horizonte de luta que acreditamos e defendemos é o de responsabilização das instituições estatais produtoras de morte e de aprisionamento. Para IDMJR, punir um indivíduo ou não punir, não afetará em nada a lógica da violência do Estado já que não atingiremos a estrutura: o Estado e as instituições policiais.
O próprio promotor da Força Tarefa do MPRJ, André Luis Cardoso, disse em pronunciamento oficial que não vê a ação da Chacina do Jacarezinho como um modus operandi da instituição policial, em ir para ruas e assassinar pessoas. E sim, uma ação individual de alguns policiais. Ou seja, mantém a proteção e a defesa da instituição policial e tenta deslocar a questão para um ato individual e isolado e não uma orientação estratégia e operacional da cadeia de comando da Polícia Civil.
O MPRJ deveria exercer sua função social e questionar o que foi toda a ação da operação policial que resultou na Chacina do Jacarezinho, e não a atuação individual de apenas dois agentes de segurança pública. Fica evidente que o MPRJ é mais uma instituição à disposição do Governo para fornecer legitimidade e legalidade às ações violentas e assassinas perpetradas por esse Estado.
A IDMJR defende a necessária responsabilização da estrutura policial e sua cadeia de comando, bem como, que o Estado seja sancionado pela execução de 29 pessoas no Jacarezinho.
Entendemos a justiça social não como sinônimo de aprisionamento de corpos, punitivismo ou violações, acreditamos no compromisso e no empenho para nenhum outro corpo negro seja tombado nas ruas e vielas das favelas e periferias. Pois, não há nada mais urgente do que a garantia da vida e sobrevivência do povo, ou seja, lutamos pelo fim da polícia, do Direito e do Estado.
Por um mundo sem polícias, com direito à vida e à dignidade. Nós por Nós.