
Por Nívia Raposo
Apesar de todos aparatos do Estado para apagar as memórias. Mães e familiares podem ser considerados arquivos vivos nas construções de memoriais.Possuem um HD com mais de um petabyte de lembranças que se transformam em “explosões de memórias”.
Enquanto (re)constroem as histórias dos seus entes (re) lembram o quão seu filho, seu irmão, seu companheiro fazem falta naquele lugar. À medida que o tempo passa as lembranças se misturam a outras lembranças( normalmente se estendem aos amigos, primos, namoradas). Essa memória coletivizada é socializada entre eles e se transformam em símbolos na luta contra o esquecimento. É necessário um olhar empático para perceber essas construções como memoriais.

Destaca-se a necessidade de se fazer o resguardo dessas memórias. Por esse motivo a mais valia é dada aos próprios familiares e amigos, que são fontes inesgotáveis de ideias,inclusive utilizando seus corpos como suporte para o resguardo dessas memórias. São variadas as tatuagens com desenhos diversos, algumas frases de efeito, partes de música, ou o nome do ente. Além de servir de suporte, o corpo também serve como bandeira de luta contra o apagamento dessa figura. Muitas mães, familiares e amigos também produzem poemas, músicas, artes em forma de costuras e bordados, as linhas e pontos ganham um novo significado.

Em meio a tudo isso, os grafites tem aparecido como uma forma de homenagem. Sem reduzir as pessoas para um único momento, mas para ressignificar aquele local, aquele espaço, aquele território, dando uma vaga ideia de quem era aquela pessoa tão querida. Para as famílias contempladas com grafites , essas produções têm um significado especial. Pois, sabem que aqueles “corpos caídos no chão” tem uma história que precisa ser contada. Esses locais também se tornam “lugares de memórias”, criando o sentimento de continuidade.
A ideia é utilizar essas produções móveis ou não para somar na luta por justiça afetiva. Entendendo que esses “espaços apropriados” são resgates de sociedades memoriais que estavam mantidas no profundo sono do esquecimento. Não podemos ignorar que outras mães e familiares produziram vários memoriais como livros, camisas com fotos e fizeram diversos debates em espaços públicos. Esse passado vivido tem como pedra angular as memórias. Sem elas, as histórias só serviriam de representações do passado.
Ademais, é importante assinalar que a luta para dar certo precisa ser coletiva. A lógica do Estado é a dominação dos espaços e a grande vantagem é a capacidade e “possibilidades de colocar distâncias físicas entre as coisas e pessoas que incomodam”. Nesse sentido, hoje utilizamos esses pretéritos para ocupar as ruas e praças com nossos corpos, nossas bandeiras, nossos poemas, nossas músicas homenageando todos os que foram mortos ou desaparecidos pelo Estado.

Familiares de vítimas do Estado podem construir um arquivo ou dossiê com os acúmulos de documentos, testemunhos, objetos, imagens e assim materializar um memorial a qualquer momento em lugares visíveis a outras pessoas. Sobretudo nas ruas. Mesmo que o Estado adote a cultura do apagamento, com discurso que todos somos iguais e que vivemos num país democrático. Sempre soubemos que a democracia nunca foi para a população preta, pobre, favelada e periférica.
A pedagogia reconstrutiva advinda das dores das mães denotam que esses lugares de memória podem e devem ser funcional, simbólica e materializada de alguma forma. Seja através de desenhos artísticos em paredes, no corpo, em tecidos ou em forma oral e escrita. Ocupando as ruas com os saberes orgânicos do povo, fazendo das ruas nosso palco e nossos museus a céu aberto. Afinal, já passou da hora de entendermos que foram as mãos calejadas do nosso povo que construíram esse estado. Essas construções ainda estão com vestígios de um passado recente. Precisamos começar a entendermos o que os olhos não querem enxergar.
Para materializar este processo trazemos uma vídeo poesia construída pela jovem Samira J.de Carvalho, que era amiga de Fernando Ambrósio jovem assassinado pelo Bope em Japeri no bairro de São Jorge no dia 23/10/2017, que ao construir essa poesia afirma que passados 4 anos desse assassinato, sua memória viverá nos e pelos amigos e familiares. Também trazemos duas imagens: uma de seu irmão Felipe Ambrósio e a outra de sua prima Paloma Maia, onde ambos tatuam em seus braços uma mensagem eternizada para ele.
O Estado tenta nos apagar, mas estamos produzindo conhecimento/epistemologias e memórias cotidianamente como resistência. Este texto com toda materialidade é uma homenagem a Fernando Ambrósio, amigos e familiares. Baixada Resiste!
Bourdier. Pierre – “Efeito de lugar” -Espaço físico, espaço social, espaço físico apropriado” publicado em La misère du monde em 1991 (em português em 1997)
Nora. Pierre – Entre memória e História – A problemática dos lugares – SP – Revista Prof História – (10) Dez. 1993.* tradução: Yara Aun Khoury