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Por Equipe IDMJR


Nossos corpos são os nossos livros” – Iyá Wanda de Omulu

Tradicionalmente a sociedade entende a construção de memórias como a retenção de impressões e lembranças adquiridas em um momento passado, se ampliarmos essa questão para a sociedade como um todo, memória terá significados, significações e usos ampliados no imaginário social. Portanto, a memória é uma construção coletiva e deve ser valorizada como tal, como uma parte importante das relações sociais de uma sociedade. 

Dado esse preâmbulo, a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial busca estimular as reflexões sobre as questões do debate de memória, principalmente pela memória produzida a partir da morte resultado de violações de Estado, seja  por meio das forças policiais, redes de milícias ou facções de tráfico. Haja vista, o direito e garantia de memória no Brasil são ações da resistência do povo negro, pobre, favelado e periférico frente ao genocídio cotidiano do povo negro. Ressalta-se que as principais protagonistas das contranarrativas e memória de vítimas de violações de Estado são as mulheres negras e periféricas.

São as mulheres negras que compreendem que não esquecimento deve ser colocado em uma perspectiva intergeracional, ou seja, a memória utilizada para a construção de um futuro diferente. E assim, lutar coletivamente para que atos traumáticos não mais se repitam.

Para nós, da IDMJR, a construção de memória partem de ações individuais e/ou coletivas. Na maioria dos casos, a dor gerada pelo assassinato ou desaparecimento forçado de um ente querido resulta na necessidade de criar intervenções para que a memória dessas vidas jamais sejam esquecidas. A IDMJR entende que o direito à garantia de memória é também um mecanismo de reparação histórica e promoção de justiça racial. Por isso, criamos um memorial virtual em nosso site institucional para promover a memória de vítimas da violência, mostrando que essas vidas que foram cruelmente encerradas continuam existindo pela resistência coletiva.

Após a morte de um filho, essa família é atravessada por outras violências que esse Estado promove, como criminalização, o não acesso a investigação, nem ao menos a elucidação dos casos ou qualquer tipo de reparação psicossocial e econômica. 

Nesse processo contínuo de dor, as mães negras – que são as mais afetadas pela violência estatal, das principais dores que essas mulheres relatam após perderem de forma brutal seus entes queridos é como o Estado ainda tenta retirar o direito à memória dessas vidas que foram ceifadas pela violência.

E mesmo com todo esse cenário de violações constantes e cotidianas, as mulheres negras são as responsáveis pela produção de memória e disputam narrativas, principalmente as narrativas racistas que o Estado produz sobre assassinatos e mortes em favelas e periferias. 

A concepção de morte é encarada de maneira distinta pelo povo marginalizado, alguns desconhecem que as “histórias dos negros é inseparável da história de Brasil”. Porém, tais elementos mesmo sofrendo apagamento de sua existência, construíram resistências. Nesse sentido, cada familiar ritualiza as memórias dos seus entes, os elementos desses rituais e lembranças são escolhidos de acordo com as preferências de cada família, de acordo com cada especificidade da vida dessa pessoa tão especial que foi perdida de forma tão abrupta.

Por vezes, nesse processo de trabalho e luta nos deparamos e percebemos que algumas mães e familiares se silenciam. O silêncio precisa ser entendido não como uma questão de esquecimento, mas, como também um dispositivo de cuidado e proteção das pessoas que estão vivas e convivem com os domínios territoriais em favelas e periferias, bem como, o próprio zelo com memória dos que foram. Por isso, gritos e momentos de silêncio fazem parte da construção da memória ao mesmo tempo.

A memória é um dispositivo que mantém viva as lembranças da vítima e que podem ser desde recontar as histórias vividas por essas pessoas, através de desenhos, imagens, fotografias, poesias, textos, músicas, vídeos e até mesmo não materiais, como a lembrança do cheiro da pessoa, do odor da comida que mais gostava, música que ouvia e qualquer lembrança que faz recordar a pessoa.

Afinal, acreditamos que a memória é para além dos instrumentos materiais e visuais, já que historicamente nosso povo sobreviveu recontando suas histórias de resistência e dor através da oralidade, da religiosidade, da dança, do toque e dos sentidos de forma ampla, em que a ancestralidade se mantém viva e entre nós.  

A memória também é um instrumento importante na luta por reparação histórica e justiça racial. Pois, são os dispositivos e dão respostas mais imediatas frente a violência do Estado. Dessa forma, ao produzir memórias os familiares (re) fazem e (re) escrevem sobre mais uma vida ceifada pela violência estatal, impedindo que nossos jovens virem apenas mais um número na estatística. 

Diante dessa luta por memória e reparação a IDMJR busca promover um sentimento coletivo de reprovação a qualquer tipo de violação, em especial da Violência de Estado. Por isso, entendemos a memória e reparação como a construção da justiça racial, afetiva e de manutenção da história. Recentemente em uma live promovida pela Iniciativa, Vanessa Francisco Sales, mãe da Ágatha Félix, trouxe uma reflexão muito dolorida e importante que ilustra essa luta por memória, em sua fala ela disse: “Procurando fotos da minha filha para postar me dei conta que em algum momento as fotos vão acabar porque essa vida foi tirada de mim.” A luta cotidiana por memória e justiça racial tenta ocupar essa lacuna da ausência.

Ao falar, dar visibilidade, promover e apoiar ações de garantia a memória temos a certeza que estamos criando a possibilidade de pensar e concretizar a justiça para algo além dos marcos da sociedade capitalista. Quando construímos memórias, garantimos que essa juventude não seja reduzida a números ou criminalizados. Por isso, nós, da IDMJR, acreditamos que ao produzirmos as nossas próprias memórias materializamos que há vida para além da lógica deste Estado capitalista, racista e genocida – e que deve ser derrubado! Logo, estamos produzindo outras formas de sociabilidade a partir dos nossos próprios marcos. 


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