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Por Cristiano Silva¹



Tortura, etimologicamente vem do latim e significa, tormenta, ato de torcer, de torquere, dobrar, torcer, deformar, impor dor física ou psicológica por crueldade, intimidação, punição, para obtenção de uma confissão, informação ou simplesmente por prazer.

Iniciar um texto com uma palavra carregada de traumas e sofrimentos, traz à baila memórias que se perpetuam na dinâmica existencial individual e coletiva. A partir da transição do nomadismo para o sedentarismo, as relações de convívio foram reconfiguradas e pautadas no domínio de práticas, das quais possibilitaram avanços imprescindíveis.

No entanto, trouxeram hábitos nocivos e violentos fundamentados nos
interesses de proteger, conquistar e/ou ampliar territórios, riquezas e conhecimentos. Ao revisitar a história e nossas memórias, encontraremos os notórios resultados provocados, por práticas de torturas no seio de um público específico.

Necessitaria de muitos parágrafos para relatar tantas barbáries, contudo, dentre os processos de desumanização e violência, o ato de subjugação efetuada pelas ideias civilizatórias eurocêntricas, imbricadas com as negociações perversas das grandes navegações, não poderiam deixar de ser citadas.

O heterogêneo continente africano sofreu com violências brutais inesquecíveis, empreendidas pelos interesses produtivos continentais em destaque, os continentes europeu e americano. Consolidado o comércio escravagista ultramarino, o oceano atlântico foi a principal rota de transporte, etnias foram dizimadas e subjugadas, sofreram intensas torturas. Da captura ao embarque, tumbeiros, lotados de indivíduos portadores de identidade, história, memória e sentimentos, foram massacrados,ultrajados e sequestrados.

Forçados a construírem e diluírem suas próprias memórias e identidade, em meio ao massacre, ter de lidar com as abruptas rupturas familiares e com todo tipo de negação, é torturante. No desembarque em Pindorama (terra das palmeiras), nome dado ao Brasil pelos autóctones no período pré-cabralino, os(as) escravizados(as) depararam-se com outro cenário degradante, memórias de um passado recente e brutal, imposta sobre os nativos da terra, onde sofreram com os extermínios etnocêntricos europeus.

No decorrer de todo processo necropolítico histórico, autóctones e escravizados(as) derramaram sangue, lágrimas, sofrimentos e dores inimagináveis, e construíram um país alicerçado debaixo de
muita tortura. A falsa abolição, o abandono social, a segregação e o inaceitável racismo manteve essa população no lugar do morticínio e das torturas psicológicas, sociais, políticas e econômicas e as empurraram para um abismo miscigenado de negações.

Os instrumentos de tortura usados nos tempos da escravidão, foram reutilizados pelos torturadores no período ditatorial militar e no desenrolar dos dias. Demonstraram nos mais variados níveis a monstruosidade institucional, corpos contabilizados, vidas dilaceradas e interrompidas,
resultado das políticas de apagamento físico e social.


A favelização, a criminalização da pobreza, desemprego e a desigualdade social, são fatos que configuram tortura, os mesmos grilhões atravessaram a temporalidade e continuam inacessíveis os serviços primordiais como,água potável, alimentação saudável, saúde, educação de qualidade emancipatória, esporte e lazer.

Além de causar inúmeras doenças físicas e psicossomáticas, escancaram as portas da prisionização, um forte projeto político democrático burguês.
O Artigo 5°da declaração universal dos direitos humanos aborda: “Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante, não obstante, o Estado viola em todo tempo tais direitos.


A tortura reflete, danifica e transita no dia a dia, dos barracos, ruas das favelas e periferias da cidade, a tortura vem, pela operação policial mal sucedida, na disputa pelo controle territorial. A tortura vem, quando mães perdem seus filhos e filhas por meio da brutalidade estatal e quando os doentes morrem nas filas dos hospitais públicos.

A tortura vem, quando provedores(as) são assolados(as) pelo desemprego e pela incerteza, a tortura vem, enquanto populações vulnerabilizadas em situação de rua vivem inviabilizadas e invisibilizadas. Métodos perpetuados pelos torturadores físicos e jurídicos que cortam nossa carne, asfixiam nossas reivindicações e a única coisa que sabem fazer, é proporcionar dor para manter o controle dos corpos, consoante ao sistema capitalista que mantém e conserva a tortura cotidiana.

Enquanto sobrevivente do sistema penal fluminense, vivenciei situações nos intramuros, um conjunto de questões torturantes, superlotação, arquitetura penal sufocante, ruptura e massacre na visita familiar, ausência de saúde física e mental, alimentação precária, racionamento de água, morosidade jurídica e abuso de autoridade dos agentes penais.

No extramuros, etiquetamento, segregação, ostracismo e condenação social, falta de políticas de inserção, nos setores subalternizados da sociedade, negação de direitos civis. Grande parte da população que está acautelada nas ruas, favelas e prisões somos nós, parafraseando o músico baiano, Edson Gomes: “Sim, somos nós que estamos nas calçadas; Sim, somos nós que estamos nas prisões”.

Sei que faltaram muitos detalhes e muitas outras histórias, como disse, seriam necessários muitos parágrafos para marcarem tantas violações e covardias, embora o dia 26 de junho é marcado como o dia internacional de apoio às vítimas da tortura, o apoio e acolhimento sempre veio e virá dos guetos, de vítima para vítima e do verdadeiro nós por nós!



¹Utilizo das minhas experiências para escrever o texto, enquanto sobrevivente do sistema prisional fluminense.

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