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Por: Monique Rodrigues, Fransérgio Goulart e Giselle Florentino

Toda história de insurreição e resistência que a população afrodescendente constrói na história da luta contra opressão e violência de Estado, tem seu começo no enfrentamento a escravidão negra no Brasil. Aprendemos com as referências ancestrais de pessoas que atravessaram a escravidão, metodologias de enfrentamento coletivos e ações contínuas, que também são organizadas dentro das necessidades de cada tempo. A violência, o genocídio, a expropriação da força de trabalho, a servidão e o apagamento da memória são as armas que o Estado utiliza para exterminar corpos e saberes pretos, em contraponto, a organização quilombola aponta que a estratégia coletiva, contínua e organizada do povo, tem um poder revolucionário.

Um grande exemplo dessa organização é o Quilombo Maria Conga, situado no município de Magé, esse espaço histórico traz a referência de uma das personagens mais importantes da vivência africana na diáspora, produzindo enfrentamento e ressignificando a ação histórica de uma constante pela liberdade de uma população afrodescendente e indígena.

Maria Conga é uma liderança que foi incorporada de muitas formas, desde a condição religiosa que a Umbanda referencia por sua sabedoria das mulheres curandeiras, passando pela imagem da avó, preta velha, que carrega sua família através dos tempos com responsabilidade, sendo muitas vezes essa velha senhora provedora financeira e emocional de todos à sua volta, e sobretudo, pela personagem real que atravessa gerações contando e perpetuando a memória de determinada cultura.

Nesse amplo sentido, a experiência do quilombo é a própria natureza do que apresentamos como projeto revolucionário, o exemplo do enfrentamento à violência de Estado, que no dia a dia produz significados da vida material sem deixar que a formação da coletividade perca referenciais próprios.    

Maria Conga nascida em 1792 no continente africano, sequestrada e embarcada pelo porto da área que conhecemos atualmente como Congo. Chega ao Brasil por volta de 1804, com doze anos de idade, separada da família, vendida para um fazendeiro em Salvador e rebatizada como Maria da Conceição. Aos 18 anos Maria Conga foi vendida novamente, e chega em Magé, aos 24 anos passa por mais uma mudança de “dono”, onde permaneceu trabalhando por 11 anos, e as 35 anos foi alforriada. A partir desse evento, Maria do Congo passa a ser a referência na ação de liberdade de escravizados, tanto fugidos quanto alforriados, e funda o Quilombo Maria Congo.

“São elas [mulheres negras] que carregam a ação cotidiana da luta e promovem o direito à memória por meio da sua própria história”. 

(Monique Rodrigues)

No trânsito das violências naturalizadas pelo sistema escravagista, violência físicas e simbólicas, as memórias sobre as resistências de pessoas, e consequentemente de coletivos, mostra  quanto o Estado é o agente, e ao mesmo tempo, a estrutura mais poderosa de organização de genocídios. 

“Então esses escravos eles nunca foram capturados na história que a gente ouve falar, mas que ela contava da vida dela, ela dava palestra pra eles, ela conversava, falava que ela foi uma escrava, que foi muito sofrida,que ela viveu a vida inteira procurando seus pais, seus irmãos porque quando ela chegou na Bahia que ela foi separada dos pais e dos irmãos e que ela foi estuprada várias vezes, mas que eles nunca conseguiram tomar a alma dela porque ela ensinava a eles a não ter vergonha de ser negro, não ter vergonha de dizer que era escravo, ela já fazia o que a gente faz hoje. Hoje mulheres, temos várias mulheres aí que lutam pela igualdade dos seus direitos, ela já fazia naquela época isso”. Ivone Bernardo – Uma das mulheres lideranças do Quilombo Maria Conga.

O percurso entre enfrentamentos do passado e as ações coletivas do presente formam uma rede de memórias da resistência que produzem um panorama do que é o enfrentamento à violência de Estado na Baixada Fluminense desde os tempos coloniais.

Mulheres negras, moradoras dos bairros mais precarizados pelos serviços públicos, mães e parentes de vitimados pela violência do Estado é o perfil mais encontrado entre as defensoras dos Direitos Humanos nesses territórios. São elas que carregam a ação cotidiana da luta e promovem o direito à memória por meio da sua própria história. 

Se no passado da escravidão colonial as mulheres negras agiam para o resgate de tantos outros escravizados, homens, crianças e velhos, e essa era a condição única de liberdade e garantia da vida, no cenário atual elas atuam na sistematização da manutenção da vida, lutando incansavelmente para que o Estado seja culpabilizado por suas ações. Porque na maior parcela das histórias atuais a vida de alguém já não existe mais. Essa é uma luta árdua e muitas vezes extremamente solitária.

Foto: Maria Conga

A memória que essas mulheres mobilizam reflete uma realidade dramática desses municípios: a letalidade e o silenciamento. A letalidade que se estrutura na política racista da estrutura do  Estado e o silenciamento legitima a impunidade de todas as outras esferas de poder institucional. 

O quilombo Maria Conga, assim como todos os outros deste país, é um espaço de produção de sentidos sobre a ressignificação das memórias que a resistência promove. 

Essa ação revolucionária demanda uma atualização da memória coletiva para que não percamos nossas referências.

“Na resistência, o explorado, o oprimido, trabalha para expor a falsa realidade- para reivindicar e recuperar a nós mesmos. Nós fazemos a história revolucionária, contando o passado como aprendemos no boca a boca, contando o presente como o vemos, sabemos e sentimos em nossos corações e com nossas palavras.”Bell Hooks

A memória intrínseca desses espaços, quilombolas, indígenas, das ocupações do campo, é nosso maior combustível de lembrança e ânimo em dias de total imersão na violência como tem sido esse tempo histórico. Vovó Maria Conga e o enfrentamento à opressão é a luta pela permanência da vida, mas é sobretudo, o combate às estruturas de morte que o Estado destina desde sempre ao povo preto.

Destaca-se que se no processo histórico, Magé, município onde se encontra o Quilombo Maria Conga exerceu um papel de abastecedor de produtos para o Rio de Janeiro e era local de passagem na dinâmica econômica desde o começo da colonização até o Império. Na atualidade nos deparamos com os impactos da especulação imobiliária nesse território e esse Estado Racista para garantir e produzir essa forma de acumulação utiliza-se de diversas violências: assassinatos, contaminação por agrotóxicos e/ou poluição de águas e solo, cerceamento de liberdade e a criminalização através de processos cíveis, criminais ou administrativos dos moradores locais.

“O quilombo Maria Conga, assim como todos os outros deste país, é um espaço de produção de sentidos sobre a ressignificação das memórias que a resistência promove”.

(Monique Rodrigues)

Enquanto Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial queremos apontar que no caso de Magé, as milícias hoje exerce a soberania de quem vive e quem morre pelo Estado, o Quilombo Maria Conga vive os impactos dos casos de assassinato ou morte por esses grupos e também os cotidianos conflitos de disputas territoriais de grupos do tráfico e milicianos.

Portanto, se faz necessário ao trazer toda a memória e história do Quilombo Maria Conga, tentar ressaltar que sempre houve resistência contra esse Estado Racista. Mas, que nos dias atuais fomentar uma resistência entendendo primeiro essa complexidade de relações do Estado e os aparelhos repressores e a atual política de segurança pública da milicialização existente na Baixada Fluminense é urgente.

Afinal, nem os 300 anos de escravidão derrubou o povo negro. Logo, não será os grupos armados do Estado que o farão.

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