
por Patrick Melo
A Baixada Fluminense é a região que concentra o maior número de terreiros de candomblé no Estado do Rio de Janeiro, e é também o território com maior índice de invasões e violações de direitos das comunidades tradicionais de matrizes africanas em território nacional – segundo dados do relatório CEAP, 2016 e KOYNONIA, 2018. Ao abandonarmos o que Clóvis Moura denomina de subserviência… aos padrões ditos científicos das metrópoles dominadoras, e colocar a contribuição do povo negro para a formação social do Brasil, perceber e organizar as memórias dos terreiros na Baixada Fluminense, é possível fazer o diagnóstico e tratamento de dados, qualitativos e quantitativos, da contribuição destas comunidades para a construção, consolidação e urbanização da Baixada Fluminense e da manutenção e funcionamento do Estado do Rio de Janeiro.

É importante salientar que a Baixada Fluminense como se configura hoje, enquanto território com maior contingente populacional de pessoas negras – pretos e pardos – do território fluminense, nasce de um Complexo de Quilombos denominado Quilombos do Iguaçu, que resistiam frente às fazendas ali alocadas e às transmutações que o Estado do Rio de Janeiro passou durante todo o seu processo de formação durante e após o período de escravização. Também conhecida como Hidras do Iguaçu – figura da mitologia grega representada por uma criatura com corpo de dragão e diversas cabeças de serpente, que quando cortada uma, nasciam duas em seu lugar -, desde os tempos do império é compreendido como território negro e por consequência preconizado território inimigo pelo Estado Brasileiro, centralizando o acúmulo de manutenção e atualização de mecanismos de extermínio e controle de territórios – territórios corpos ao longo do tempo.
Durante o século XIX e XX, o Rio de Janeiro passa por uma reorganização geográfica, com a tentativa de construir uma cidade mais próxima possível de uma cidade europeia não somente no sentido de apagar a verdadeira identidade étnica do país, mas também de uma arquitetura que remontasse realidades europeias. Para isso, de forma concomitante fora transcrita no imaginário social brasileiro as figuras de negros e indígenas enquanto alheios da contribuição e de qualquer capacidade de auxílio na construção da sociedade. Esse processo que Maria Aparecida da Silva Bento cunha enquanto Pacto da Branquitude, “um pacto silencioso de apoio e fortalecimento aos iguais. Um pacto que visa preservar, conservar a manutenção de privilégios e de interesses…”, de forma romântica enquanto caminho natural onde escritores, cientistas, filhos das aristocracias nacionais, eram enviados à Europa para estudar e retornavam ao país colônia imbuídos dos ideais colonizadores do que seria uma nação. Portanto, era fundamental que os corpos e comunidades negras, bem como todas as suas manifestações culturais desaparecessem do centro da cidade, tendo em vista seu caráter social obsoleto e desordeiro.
Isto resultou na retirada forçada, direta ou indiretamente, das comunidades negras – e portanto as casas de candomblé – da região do Centro do Rio. A exemplo a Praça XI e a região hoje chamada de Pequena África, que entre 1850 e 1893 serviu para acolhimento e consolidação de africanos libertos e imigrantes negros e indígenas da Bahia, que foi destituída durante este período, levando estas comunidade para regiões cada vez mais distantes.
Pari passu a este processo, sobre a presença destas comunidades na região central da capital, o terreiro mais famoso à época, a casa de Tia Ciata, resistia com suas funções, tradições e festas no local. “Essas festas, religiosas ou não, estavam garantidas, salvaguardadas da perseguição policial por ter Ciata como marido um funcionário público ligado a polícia. Portanto, além da tradicionalidade, existia o fator segurança, o que propiciava um ambiente perfeito para preservação das práticas religiosas dentro dessa comunidade.” (GAMA) O que se percebe, portanto, é que apenas com a assimilação, criação de rede e relações com instituições do Estado – com ênfase na instituição polícia – é que se tornaria possível a permanência de um espaço negro e suas manifestações no Centro da Capital Fluminense.
A possibilidade de existência e resistência de territórios – territórios corpos negros sempre foi alvejada das mais diversas formas pelo Estado, caso se cristalizasse sem a presença e controle dele. Os ataques desferidos a terreiros, desde o processo de criminalização da fé, às batidas policiais que resultaram em apreensão de crianças e de patrimônio, o escárnio público em grandes veículos de informação e a negação pela ciência de sua existência e contribuição para a construção do que chamam de nação, é na verdade uma investida a qualquer possibilidade de levante contra os modos de produção e reprodução de vida de um país capitalista e colonizador.
O terreiro mais antigo antigo do Estado do Rio de Janeiro, Ile Asé Opo Afonjá – 135 anos, fica localizado em São João de Meriti, no bairro de Coelho da Rocha. Além deste, é possível notar contribuições importantes de outras casas, como o Ile Omiojuarô em Miguel Couto – NI, O terreiro de Joãozinho da Gomeia em Duque de Caxias, o Ilê Babá Ogum Megegê Axé Baru Lepé, popularmente conhecido como Terreiro do Parque Fluminense, o Axé Ile IyaMim em Santa Cruz da Serra e outras casas de significativa relevância, capilarizadas nos 14 municípios que formam a Baixada Fluminense hoje.
Longe de ser mera coincidência, entre 2018 e 2019, culminando num período de posicionamentos verbalizados por chefes de Estado contra populações pretas, junto a recordes de letalidade policial em territórios de favelas e periferias, ataques sistemáticos a comunidades tradicionais de matrizes africanas em territórios específicos da Baixada Fluminense. A série de incursões, que envolveu desde a proibição de cultos, festas, toques e uso de roupas até expulsões de adeptos e depredação direta aos templos, na prisão de um grupo de traficantes ligados a facções denominadas traficantes de Jesus. Mais uma vez, o Estado possuidor do monopólio da violência, capaz de criar alvos inimigos e corpos culpados, coloca pessoas negras sob a égide da ilegalidade, eximindo-se da culpa na manutenção de um país edificado sob pilares racistas e elevando o racismo religioso enquanto problema individual e não estrutural.
Também neste hiato de tempo, em todo o território nacional e não diferente no Estado do Rio de Janeiro, mulheres negras ocuparam cadeiras nas casas legislativas. O fenômeno desencadeado e fortalecido a partir da execução não solucionada da Vereadora Marielle Franco provocou esperanças pela ocupação de espaços institucionais e colocou pautas das populações negras – e por consequência tanto a perseguição religiosa a comunidades tradicionais de matrizes africanas, quanto as pautas de segurança pública – nas sessões ordinárias de câmaras e assembleias legislativas. De forma díspar, estes temas foram postos em cheque com a articulação de projetos e programas das bancadas da bala e da bíblia, configurados enquanto problema de “segurança pública”, sem solução material, a não ser a presença de mais policiais nos territórios. Portanto, não difere dos métodos históricos de envolvimento de instituições militares para tratamento de casos onde os territórios – territórios corpos pretos estavam expostos a ameaças. Bem como, quando direcionados a órgãos de assistência do Estado, com o mesmo encaminhamento (literalmente de séculos): a retirada de lideranças e comunidades dos territórios, desconsiderando a dificuldade de se retirar uma comunidade inteira de determinada região, sem aporte algum para reinserção da mesma em outro espaço.
Portanto, toda a trajetória das comunidades pretas e de tradições de matrizes africanas no Rio de Janeiro, em especial na Baixada Fluminense, nos deixa o legado tácito de que a produção de memória e a manutenção da vida de territórios – territórios corpos pretos não se dará pelas vias do Estado, não será solucionado acionando seus atores, e muito menos judicializando a partir da individualização de caso. Se faz necessário, aqui, ter honestidade em reconhecer que o Estado Brasileiro é criminoso pela ação e pela omissão frente ao acúmulo histórico de casos de racismo religioso, compreendendo quem é o grande executor do projeto de apagamento de qualquer possibilidade de resistência do povo negro e das classes trabalhadoras.
As casas de candomblé, enquanto comunidades pretas da Baixada, cumpriram e cumprem papel fundamental de preservação não apenas das memórias e histórias, mas também de corpos pretos. São o que algumas lideranças de terreiro chamam de memória ancestral, o conjunto de mecanismos e tecnologias ancestrais, que são repassadas a cada geração, os AWOS – segredos fundamentais – que as comunidades de terreiro resguardam e preservam, os segredos imprescindíveis para garantia de sobrevivência.
A memória destas comunidades, bem como toda sua contribuição para a formação da Baixada Fluminense, contém métodos e estratégias coletivas de enfrentamento a violações de Estado, construídas desde a escravização de negros africanos e afro-descentes. Estes métodos e estratégias redigem processos que perpassam desde a manutenção e produção de memória espacial a formação de sociabilidades e redes coletivas que garantem a sobrevivência e permanência do povo negro da Baixada Fluminense.
É das encruzilhadas, ruas, becos e vielas que sempre vieram a nossa resistência, é da malandragem que tiramos nossas gingas e mandingas para sobreviver à branquitude, nossos tambores e ervas são o que acordam nossos corpos e nos mantém de pé, e são com os Orixás, Voduns, Nkisis e Encantados – as forças da natureza – que compreendemos que nós não morremos, assim como as Hidras do Iguaçu, onde nos cortam, nós brotamos.
Esse projeto de poder e alienação imposto também pelas “igrejas eletrônicas” onde tem uma grande parcela de culpa, com seus discursos e ódios e alienação cultural.
É preciso se descoloniza-se e fazer um resgate Ancestral com os povos Oriie os povos que cultuavam seus Ancestrais e Divindades…
Resistir é preciso.