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Por Nívia Raposo

Um novo mundo possível, desde que consigamos manter as memórias de nossas resistências.

Me chamo Nívia Raposo e venho aqui compartilhar uma espécie de diário de bordo que produzi da experiência ao participar como mãe vítima da violência do Estado, Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial do Fórum Social Mundial no México (01 a 06 de maio de 2022) com a delegação CRID – Coletivo de Organizações de Solidariedade Internacional de Mobilização e Cidadania.

Virar a Família CRID foi mais uma dentre os muitos processos de aprendizado que vivencio. Somos uma delegação muito diversa, com barreiras linguísticas, mas que ao nos comunicar, entendíamos perfeitamente as violações herdadas desde a colonização. Ouvir os mais velhos e os mais novos que vivenciam as negações de direitos em diferentes países é muito diferente de ler sobre. Escutar sobre as estratégias nos territórios, sobre conflitos armados, sobre educação popular, sobre o desinteresse pela vida política (e o quanto isso atrapalha), sobre não se ter estrutura, parecia o diálogo cotidiano dos movimentos sociais no Brasil, mas estas questões eram trazidas de países que vivenciam as barbáries do Estado todos os dias. Entre as muitas atividades,  pude compartilhar a conjuntura do Brasil…um país fundado na escravidão, que nega o racismo, mas que o pratica cotidianamente. É difícil explicar que um lugar conhecido como “segunda África” tem a existência do racismo. Um país tão rico culturalmente, mas que não valoriza sua população. Genocida seu povo e criminaliza as resistências.

Sempre importante externar o quanto o mito da “democracia racial” tem feito vítimas diárias. Nesse sentido, minha escuta afetiva não precisou ser ativada para perceber as semelhanças. No México encontrei um “mundo possível”, a vida comunitária, onde todos são responsáveis por tudo e todos. A cidade do México é um museu a céu aberto. Com uma arquitetura riquíssima de detalhes que remetem ao passado colonial, mas que remontam também as histórias das resistências. As histórias dos povos de lá não são diferentes das histórias dos povos de cá. Percorrendo as ruas do México, impossível não perceber os olhares das pessoas, afinal sou uma estrangeira, sou uma turista. Ainda que eu os entendesse perfeitamente, alguns não me compreendiam completamente. Mesmo assim, conseguimos trocar informações, o diálogo é fundamental…

Ahhh!!!! Que experiência incrível. Gratidão, mais uma vez a família CRID. Ressalto que nos nossos territórios, a oralidade sempre fez parte das nossas vidas. Nossos ancestrais se utilizavam como forma de ensinamento e aprendizado, mas a oralidade é uma tradição viva. Todos somos produtores de histórias e o poder da palavra, o poder da memória remontam a cortina de retalhos do que é o mundo. Se queremos mudanças no mundo, precisamos estar atentos para as nossas histórias e nas histórias dos outros.

Sem dúvida voltei com a bagagem cheia de novas histórias e novas narrativas, que me ajudarão nas construções de memórias entre os nossos. Voltando os olhos para o Brasil a começar pelo Rio de Janeiro que tem em sua capitalidade, a história e a memória do colonizador como balizador de história única e verdadeira. Nota-se o descarte das experiências vividas pelo elemento negro e indígena. Sobretudo, no que se diz respeito as resistências. Pouco se fala sobre as insurreições no Brasil, uma que que ocorreu um pouco antes das leis de terras (1850 – uma antecipação de se organizar a propriedade privada no Brasil, com grandes fazendeiros e políticos latifundiários garantido em lei que negros não poderiam adquirir terras.[1]). O Levante[i]* das Carrancas -13 de maio 1833- (sempre que se fala em povo preto fazendo levante utilizam a palavra revolta). Fala-se pouco sobre a Revolta do Malês, menos ainda da Revolta dos escravos de ganho na Bahia, onde os trabalhadores cruzaram os braços por 10 dias em junho de 1857, devido as imposições e medidas restritivas as quais estavam sendo submetidos os ganhadores, havia uma pressão para dificultar o ganho diário, e em respostas os ganhadores fizeram a paralização de todos serviços de transportes na cidade…o medo das insurgências e o risco do desabastecimento em Salvador fizeram a branquitude tremer por algum tempo. A palavra de ordem na época era “desafricanizar” a cidade da Bahia. “Os ganhadores” organizavam-se em “cantos”, uma forma solidária e de espírito comunitário dos trabalhadores africanos, ali escolhiam um capitão que distribuíam as tarefas, ordenavam os trabalhos e atendiam os fregueses…o canto tem tudo a ver com encruzilhada, lugar de encontro, de música, lugar de encanto, de oferecer os trabalhos de ganho[2]. Essa vida comunitária precisamos resgatar, juntamente com a memória esquecida. A esses heróis e heroínas todo nosso respeito. É preciso contar a história que a história não conta. Enxergar nas arquiteturas do passado, as mensagens dos nossos ancestrais. Nossas referências precisam ser rememoradas. Produzirmos cada vez mais memoriais, e assim resgataremos as histórias dos nossos, transformando a cidade e contra colonizamos o pensamento. Não temosprivilégios sociais, mas sempre faremos resistências as imposições do Estado (seja por apagamentos ou pelo silenciamentos).

Dessa forma, familiares do Estado podem escolher seus próprios heróis. Nossos heróis não usam capas, não recebem medalhas, tão pouco recebem rachadinhas. Porém, nossos heróis fazem resistências no enfrentamento cotidiano ao Estado classista, racista, homofóbico. 


[1] Referências:

SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[2] REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Cia das Letras, 2019.


[i] Grifo meu – Revolta das Carrancas

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