
Por Fransérgio Goulart e Giselle Florentino
Este breve artigo de opinião resulta da nossa indignação perante a tendência de aumento dos casos de decapitação e esquartejamento que vem ocorrendo na Baixada Fluminense. No dia 17 de janeiro de 2022, mais uma pessoa negra foi decapitada em Belford Roxo1. A remoção da cabeça ou de outro membro do corpo de forma acidental ou intencional, na maioria dos casos são realizadas por facas, espadas, machados ou foices.
O uso da decapitação e do esquartejamento de pessoas na Baixada Fluminense têm sido utilizado como parte da estratégia e/ou métodos de atuação territorial das milícias, dos agentes e ex-agentes de segurança pública, bem como, de facções de varejo de drogas. Os processos de mutilação de corpos ocorrem, na maioria das vezes, após a realização do desaparecimento forçado2 deste mesmo indivíduo. Uma sequência de violações que ocorre desde o sequestro, assassinato, desmembramento até a ocultação deste corpo.

As milícias na Baixada Fluminense têm amplamente utilizado a decapitação e posteriormente a exposição de diversas partes de corpos desmembrados em espaços públicos para a construção de uma pedagogia do medo. Em que ao apresentar a cabeça ou as partes de um corpo em via pública, imprime a mensagem de controle e poder territorial, tudo isso ocorre em áreas predominantemente negras, faveladas e periféricas, que contam com ação ou a omissão do Estado.
Ademais, ressaltamos que o ato de decapitar pessoas é uma marca histórica desde o processo de colonização do Brasil, em que a mutilação era utilizada como instrumento de castigo e controle para a população negra escravizada. Assim como, o dispositivo de desaparecimentos forçados, o desmembramento de corpos como método de terror, perpassa toda a história do povo negro em diáspora. Uma das principais determinantes do período escravagista foi o caráter violento na captura do povo africano viabilizado através de mecanismo de tortura, sequestro e dominação de corpos negros. Tais dispositivos não se findam com a Falsa Abolição, pelo contrário, os dispositivos violentos continuam a serem utilizados para controlar e subjugar corpos negros em diferentes tempos históricos e sob distintas condições.
Ao fazermos esta busca no período escravagista brasileiro, destaca-se a decapitação sofrida por Zumbi dos Palmares, que após seu assassinato, teve sua cabeça exposta em praça pública na cidade de Olinda, como símbolo político para impedir levantes e insurreições da comunidade negra.
Os métodos de controle através das punições como açoitamento, espancamento, decapitação, esquartejamento, enforcamento, carbonização e até mesmo o ato de denterrar pessoas vivas eram vistos como algo comum e aceitável parar corpos negros, devido ao processo de desumanização dos corpos negros, pois essas pessoas era entendidas como mercadorias à disposição.
Por isso, torna-se especialmente necessária e complexa a tarefa de debruçar-se sobre estes processos de decapitações e esquartejamentos, como um legado do processo escravagista e também de terror do Estado. Haja vista, a punição como pedagogia do medo é um elemento fundante das sociedades ocidentais e também mantenedor da exploração e subjugação no sistema capitalista definido pela hierarquização racial, por conseguinte, dos privilégios da supremacia branca.

Inclusive, deixamos aqui uma provocação para o campo progressista, já que poucas organizações e movimentos sociais têm se mobilizado para discutir o fenômeno dos desaparecimentos forçados e outros métodos de terror de Estado.
Ao utilizar-se do dispositivo de silenciamento sobre a temática, não estaria a própria branquitude mantendo e protegendo seus próprios privilégios? Percebemos que trata-se de um debate minimamente incômodo para aqueles que não querem enfrentar o racismo que estrutura todas as relações sociais brasileiras. E não será fugindo ou evitando a discussão sobre continuidades de violações do período escravocrata que sobrevivem até os dias atuais que resolveremos a dívida histórica que este país possui para com o povo negro.
Na Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, temos a certeza que o racismo e suas metodologias de produção de morte, como desaparecimentos forçados, decapitações e esquartejamentos, são dispositivos que ainda imperam como um sistema perpetuador de práticas e lógicas escravagistas. Portanto, para garantir a vida da população negra é urgente abolir os dispositivos e instrumentos escravocratas que ainda existem e se reproduzem na sociedade brasileira, seja em forma de desigualdade racial ou na letalidade policial. Não há luta mais urgente e necessária que promover o direito à vida do nosso povo, isto reconstruindo e construindo lógicas abolicionistas que possam acabar com todas as institucionalidades que continuam a perpetuar a produção de morte e o encarceramento em massa.
1Ver mais em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/corpo-decapitado-encontrado-em-belford-roxo-25357188.html