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Por Fernanda Nunes

Nesse mês de março, a maior Chacina que ocorreu na Baixada Fluminense, completará 15 anos. Dentre os rastros de violência e destruição deixados nos trechos de Nova Iguaçu à Queimados no dia 31 de março de 2005, em meio aos 29 corpos que tiveram suas vidas interrompidas, estava Renato de Azevedo. 

A quatro dias de seu aniversário, Renato deixou para trás sua casa nova, sua noiva, seus poucos e bons amigos, sua coleção de CDs do Racionais Mc’s e o mais importante, sua irmã Silvana. A “Nem”, como é conhecida. Desde então, Nem luta diariamente para manter viva a memória de seu irmão e de todas as vítimas daquele dia. 

A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial – IDMJR tem na sua missão a valorização da vida e a manutenção da memória de vítimas e familiares da violência de Estado. Nossa percepção é de que a memória para essas pessoas têm a função de não permitir que a vida e o legado dos seus entes queridos sejam esquecidos.

Conversamos com a Nem sobre a sua luta diária em busca de justiça e memória, sobre o seu irmão Renato e sobre os impactos cotidianos desde aquele 31 de março de 2005.

Quem era o Renato? 

Nem: Falar do Renato é triste. Ele era um rapaz muito bom, carinhoso, trabalhador, começou a trabalhar novinho já que não tínhamos mais nossos pais. Renato era de poucas amizades, como todos da família, era muito reservado. Ele estava construindo uma casa para o morar após o casamento, logo assim tudo aconteceu e eu perdi meu chão. Hoje eu me pego pensando que já vai fazer 15 anos, mas é como se fosse ontem. 

Qual a principal lembrança que você tem dele em vida? Algum dia/momento especial vem em mente quando lembra dele? 

Nem: Lembro dele agitado para fazer churrasco, inclusive antes dele ser executado ele tinha comprado carne, asa, tudo para fazer um churrasco no aniversário dele, que seria no dia 4 de abril. Mas, durante a semana (da chacina), ele disse “ah, vamos comer essa carne aqui e no meu aniversário eu compro tudo de novo!” e esse dia não chegou, ele morreu quatro dias antes do aniversário. 

Hoje, depois de tantos anos, o que te motiva a continuar na luta? 

Nem: A lembrança, a importância de não cair no esquecimento. Embora hoje, eu veja que as pessoas estão esquecendo muito. O mais importante não é nem que o próximo se esqueça. Mas, que eu possa realmente relembrar o dia 31 de março, pois esse dia marcou a minha vida. 

Muitas pessoas admiram sua força e trajetória, mas na família, como é o engajamento na luta? 

Nem: Na minha casa eles acham que para que eu faça uma caminhada, eu estou recebendo pra isso. Eu realmente fico muito revoltada quando escuto isso, mas eu falo assim “cara, não estou ganhando nada não. Eu estou fazendo isso de relembrar o 31 de março para que outras famílias não venham chorar o que eu chorei”. Realmente, graças a Deus, eu tenho muito apoio, não de família, não de amigos, mas de outras pessoas que passaram a ser amigas e estão me apoiando. 

E por qual razão outros familiares deveriam também se mobilizar e/ou somar na luta das mães? 

Nem: Por apoio. É uma dor só, eu costumo falar que nós estamos no mesmo barco, é a mesma perda pelo Estado. 

Como você mobiliza a outros familiares, principalmente em Queimados, onde seu irmão foi assassinado? 

Nem: Eu tento, mas ainda não tive sucesso em mobilizar nenhum. As famílias ficam com muito medo! Eu já tentei levar várias mães para a Rede e não consegui. As pessoas acham que a Rede de Mães vai fazer justiça, no entanto, a Rede de Mães é uma rede de apoio, a justiça quem faz é o Ministério Público, nós não. Elas (mães que tiveram seus filhos assassinados) tem muito esse foco de justiça, principalmente no começo, que a pessoa fica tão revoltada que não quer apoio, quer que a pessoa do outro lado dê justiça, elas acham que o apoio é menos importante. 

A maioria das pessoas que participam da Rede e que lutam para manter essa memória viva são mães, mas no seu caso, você perdeu o irmão. Como você acha que a sua presença estendendo essa bandeira impacta? 

Nem: As pessoas questionam muito “ah, você não é mãe”! Tá, tudo bem, não sou mãe. Mas, eu faço o papel de muitas mães que perderam seus filhos, porque a dor não se compara com mãe, tio ou pai. É a dor da perda, eu estou aqui pela dor da perda. Eu não sou mãe. Mas, eu sou irmã! Amo tanto o quanto e tenho certeza que eu, sendo irmã, faço mais do que muitas mães por aí que perderam seus filhos.

A rede de solidariedade e acolhimento que se forma na Baixada Fluminense desde a chacina, é o retrato de uma luta coletiva de pessoas que tiveram seus familiares violentamente retirados das suas vidas.

E também reflete uma estrutura do Estado, que está organizada para produzir esse tipo de violência, nos territórios periféricos, sem a menor culpabilidade ou qualquer prestação de contas para essas famílias.

Diariamente chacinas acontecem, em maior e menor escala de mortos, e a violência torna-se o único modus operandi da Segurança Pública na Baixada. Essa lógica existe desde a escravidão, renova-se com a República e atualiza-se a cada gestão capitalista do Estado brasileiro, que reverter essas mortes em acumulação de capital e manutenção do poder, em um histórico projeto de supremacia branca. 

A IDMJR reafirma a luta contra a estrutura racista e capitalista que através do Estado promove violência, morte e sofrimento na vida da Baixada Fluminense.


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