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Por Nívia Raposo

Em tempos de desonestidades intelectuais e apropriações indevidas, como não incluir a luta das mulheres no decorrer da História do Brasil. Se fizermos uma perspectiva histórica poderíamos notar o quanto as mulheres foram invisibilizadas pela historiografia, sobretudo porque as produções acadêmicas estavam presas a um passado recente, onde valorizavam-se obras consideradas como clássicos.

Clássicos essas escritas em sua maioria por homens brancos e abastados que fundamentaram seu conhecimento através de documentos, tidos como uma fonte de verdade absoluta. Com o tempo foram surgindo novas tendências historiográficas e mesmo com algumas permanências sempre é necessário fazer uma revisão crítica do passado que podem gerar novas possibilidades de manutenção de memórias no presente. Dessa forma, nas escritas sobre a “formação” do Brasil, as mulheres ficaram de fora, especialmente as mulheres negras. 

Segundo a intelectual e feminista negra Lélia Gonzalez, que foi pioneira nas reflexões sobre as exclusões das mulheres indígenas e negras nas resistências ao patriarcado. Portanto, era necessário amefricanizar os pensamentos da sociedade. Influenciada pelas leituras do psiquiatra e filósofo Frantz Fanon, Lélia Gonzalez conseguiu desenvolver dentro dos contextos de diásporas africanas artifícios que poderiam explicar o racismo, ao passo que resgatava métodos de resistências das guerreiras do passado, tendo como objetivo registrar os sujeitos e protagonismos históricos dessas mulheres.

Gonzalez também percebeu que o pensamento dos colonizados precisavam ser desconstruídos, pois os colonizadores se retroalimentavam da estrutura racista criada por eles baseando-se numa falsa superioridade. Desse modo, as memórias das transgressões dessas mulheres, mesmo com participações expressivas durante a colônia , e se intensificando no século XIX, caíram no esquecimento. Posteriormente, seguiram sendo eclipsadas por outras histórias.

Todavia, na década de 70 os movimentos negros tiveram momentos significativos e junto com eles surgiram demandas das feministas negras que retiraram do ostracismo sócio-cultural, histórias de mulheres que foram camufladas para não serem reproduzidas no presente, em grande parte com ajuda das construções sociais que diferenciavam classe, raça e gênero. E esses extensos enraizamentos de pensamentos opressivos se impuseram de formas destrutivas, até os dias atuais.

Nesse sentido, as mulheres foram de grande importância nas transformações sociais, pois, de alguma forma conseguiram fazer mediações entre os seus pares, reapropriando-se das práticas dessas insurgências anteriores, demonstrando as diversidades e funções das memórias.

Foto: Arte de Lari Arantes

 A participação feminina foi preponderante nessa conservação, pois as mulheres poderiam estar em diversos espaços que os homens não poderiam. Revelaram-se habilidosas, podendo inclusive fazer diversas funções ao mesmo tempo com mais cuidado e destreza do que os homens. E por vezes, ocupavam espaços (ditos) masculinos.

Ignorando a história oficial e preocupada com a manutenção dessa memória, diversos estudos revelam as trajetórias de muitas mulheres negras que faziam dos seus ofícios algo produtivo e inteligente, dando uma binaridade a cada função que exerciam. Entre elas destacamos “as Marias”:  Maria Firmina dos Reis, maranhense que escreveu várias poesias, crônicas e livros, destacando-se entre eles “Ursula” e Maria Carolina de Jesus, escritora mineira que fez da sua história de vida um relato do front descrita em um diário-livro. Essas afro-brasileiras que dividiam o mesmo nome, hoje são reconhecidas pelo protagonismo feminino em espaços tipicamente dominados por homens brancos e “bem nascidos”.

Entretanto, romperam barreiras e hoje ocupam lugar de destaque na nossa literatura. Fizeram das suas escrevivências, denúncias, com enfoque para a história dos escravizados e para a falta de instrução para a população pobre e negra. O que sobra para esse povo é o sentenciamento de uma prisão sem muros, circular e hereditária: a falta de oportunidade. 

Diante dessas adversidades impostas pelo sistema racista e segracional, hoje muitos movimentos sociais com grande participação feminina se utilizam das técnicas do passado, dando asas à imaginação na luta por rememorar suas perdas e não deixar cair no esquecimento sua luta cotidiana por direitos, memória, justiça e equidade racial. Nessa perspectiva, impossível esquecer as avós da Praça de Maio ( abuelas de Praza de Maio), organização civil Argentina responsável por encontrar diversos bebês nascidos em cativeiros e sequestrados pela ditadura, servindo  de referências para diversos coletivos que lutam pela mesma causa, o direito à vida.

Sem querer ser injusta e não citar algum movimento social responsáveis por construções de memórias, até porque os coletivos de mulheres negras tem promovido diversas ações políticas e articulando-se com ONGs e instituições com envolvimento na promoção da superação da desigualdade social.

Diante disso,  elencamos algumas formas de como esses movimentos estão salvaguardando essas memórias: Fotos de filhos nas camisas, produções de documentários, poesias, produção de livros, construção de jardins, atos, manifestações, participação em audiências públicas, placas com nomes dos filhos ou do coletivo, plantação de árvores nomeando-as com os nomes dos filhos, rodas de conversas, palestras, objetos dos filhos servindo como cachepô para flores.

Além disso, tem as trocas com encontros afetivos, sempre com intuito de se fortalecerem. São diversas as formas de homenagear o ente querido, sempre trazendo consigo o modo como viviam essas pessoas no ambiente familiar. Em suma, essas memórias vão sendo construídas e produzindo narrativas contra colonizadora, sem desprezar os feitos dos antigos, porém, dando um novo contexto.

Também não poderia deixar de fora, um dos coletivos que faço parte. A Rede de mães e familiares da baixada, que tem sua centralidade a luta contra violência do Estado, oferecendo acolhimento às mães e familiares que tiveram a vida dos seus entes queridos interrompidas de alguma forma por esse Estado genocida.

Atuando com empatia e preocupadas com o bem estar da população pobre e em sua maioria negra, que são invisibilizada na baixada, a Rede de mães e familiares da baixada esse ano não poderá fazer sua 15ª caminhada anual, em homenagem aos 29 vitimizados do Estado, por conta da pandemia que assola o país e o mundo.

No entanto, é importante frisar que diversas violações são endêmicas nessas regiões e não podemos naturalizar isso nunca. Infelizmente nossa topografia favorece a grupos que já atuam nessas localidades e rompem fronteiras da pandemia para impor o medo. A violências nossa de cada dia sempre foi a adotada pelos baluartes armados e continuam sendo  invisibilizada, dessa vez quem ganha o destaque é o coronavírus.

Agora a baixada perde mais uma vez, para seu histórico de ser violentada e pela doença do poder geopolítico. Evidenciando que algumas pessoas se mostram pior que qualquer vírus. Mas, a história de luta dessas Redes, que fazem uma pedagogia contra violência do Estado jamais serão esquecidas e nem  invisibilizadas. Redes essas que tecem memórias a cada dia, sempre crescendo e se fortalecendo. 

O esquecimento é o esvaziamento que o Estado precisa para enfraquecer qualquer luta.

“Há muitas maneiras de matar uma pessoa. Cravando um punhal, tirando o pão, não tratando suas doenças, condenando à miséria, fazendo trabalhar até arrebentar, impelindo ao suicídio, enviando para guerra etc. Só a primeira é proibida por nosso Estado”  (Bertold Brecht)


Bibliografia:

CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 22, n. 3, p. 965-986,  dez. 2014 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2014000300015&lng=pt&nrm=iso&gt;. acessos em  27 mar. 2020. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300015.

OLIVEIRA, Francelene Costa de Santana. “MULHERES NEGRAS LETRAS E LITERATURA: Uma Análise da Condição da mulher negra no final século XIX a meados do século XX – 18 º REDOR – 2014-Universidade Federal Rural de Pernambuco – Recife – PE http://www.ufpb.br/evento/index.php/18redor/18redor/paper/viewFile/2309/731

SIMAS. Tatiany de Oliveira, – “Histórias de resistências e mulheres escravizadas em Pernambuco” ( 1830-1856) – João Pessoa – PB – 2017 ( Dissertação de Mestrado História) ​

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