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Por Giselle Florentino e Fransérgio Goulart

Pra nós, da IDMJRacial, o desaparecimentos forçados é uma conjunção de violações, que inclui desde o sequestro com a retira da pessoa do território, a tortura, o desmembramento – em alguns casos com esquartejamento e decapitação, o assassinato e por fim, a desova do corpo em áreas de cemitérios clandestinos. 

Nos últimos anos, estamos assistindo ao aumento dos casos de desaparecimentos forçados principalmente em áreas de domínios das milícias. Apenas em 2022, a IDMJRacial identificou na Baixada Fluminense 77 áreas de cemitérios clandestinos, quase 4 vezes mais áreas identificadas que no ano anterior. São desde terrenos baldios, lixões, rodovias até mesmo pontos de rios caudalosos e locais de linhas férreas. 

As áreas com maior número de denúncias e depoimentos de desaparecimentos forçados são as áreas de controle de milícias que de forma arbitrária e violenta encarceram, assassinam e desaparecem com os corpos dessas pessoas. Os corpos são descartados em cemitérios clandestinos ou rios para impedir a identificação das vítimas. O perfil das vítimas, em geral, é o de jovens, pretos e pardos, com baixa escolaridade, do sexo masculino e moradores de favelas e periferias. O histórico de violência urbana na Baixada Fluminense é marcado pelo cotidiano desaparecimento de corpos, mortes que são ignoradas pelas estatísticas oficiais. 

Para nós, o método de desaparecimentos forçados não é exclusivo do período da atual democracia, foi utilizado ostensivamente no período da ditadura empresarial-militar como forma de cerceamento da liberdade de expressão, bem como, como dispositivo de terror de Estado desde a diáspora negra, nos duros anos de escravização do povo negro. 

E hoje, faz 10 anos que o Amarildo foi desaparecido forçosamente. Amarildo era morador da favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro, era o 7° de 12 irmãos e filho de uma empregada doméstica e de um pescador. Analfabeto, só escrevia o próprio nome e começou a trabalhar aos 12 anos vendendo limão.

Era casado com a dona de casa, Elizabeth Gomes da Silva, Amarildo era pai de Romeu, e dividia um barraco de um único cômodo com toda a família. Também conhecido como “Boi”, trabalhava como pedreiro e fazia bicos na comunidade. Mais um trabalhador brasileiro que foi sequestrado, torturado e desaparecido forçosamente pelo Estado. 

O caso do desaparecimento forçado do Amarildo é simbólico também em relação à investigação e ao processo judicial, em que 13 policiais militares foram condenados por tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual em 2016. 

Segundo a Secretaria estadual de Administração Penitenciária (Seap), nenhum dos condenados está preso 10  anos depois do desaparecimento do corpo de Amarildo e 4 policiais militares foram absolvidos em março de 2019 e 6 condenados ainda fazem parte do quadro ativo da Polícia Militar. 

Mesmo com os policiais sendo condenados e cumprindo pena, o vínculo de funcionário público ativo não foi revogado dos policiais que eram do oficialato, Major Edson Santos – que era comandante da UPP Rocinha na época, e Tenente Medeiros, ambos continuam recebendo seus salários mensais. O que evidencia a anuência do Estado e do sistema judicial com uma instituição fundada para produzir morte, afinal mesmo estes policiais torturando, assassinado e ocultando corpos sua penalidade é mais branda que o cidadão comum. 

A IDMJRacial comunga de práticas abolicionistas policiais e penais, acreditamos que o sistema prisional não pode ser entendido como instância para ressocialização e que a responsabilização de violações de direitos humanos não deve recair de forma individualizante para os agentes de segurança pública e sim de sanção e derrocada da instituição policial e penal. 

O corpo de Amarildo até hoje não foi encontrado e a família segue sem receber a indenização estipulada pelo judiciário ao Estado. Já são 10 anos de ausência de responsabilização do Estado. 10 anos de sofrimento para amigos e familiares. 10 anos de indignação. 10 anos sem resposta, sem corpo e de justiça. 

E o que mudou no Brasil nesses 10 anos sobre a questão de desaparecimentos forçados e urgente responsabilização do Estado?

Apesar de ter participado e assinado, em 2016, da Convenção Internacional para a Proteção de Atodas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado; no Brasil não há uma tipificação para os crimes de desaparecimento forçados, mesmo havendo inúmeras recomendações internacionais sobre a temática e principalmente sobre o grau de omissão do Estado sobre os incontáveis casos de desaparecimentos de corpos que ocorrem em áreas periféricas e faveladas. Os casos que deveriam ser tipificados como desaparecimento forçados são alocados de forma decadente e leviana na categoria de pessoas desaparecidas.

Continuamos sem reconhecimento do registro administrativo da categoria de violação, não há tipologia criminal, não existem políticas públicas de enfrentamento para coibir casos de desaparecimentos forçados, não há reparação financeira para os familiares e nem investigações  policiais com direcionamento para compreensão dos  desaparecimentos forçados.

O Estado segue negando que há pessoas, em sua maioria pretas e pobres, desaparecendo forçosamente dentro da região que mora, na ida/volta do trabalho e até mesmo dentro do sistema prisional. E quando o caso de desaparecimentos forçados ocorre com as mulheres, ainda possui a camada de violência sexual!

Por isso, a importância da construção de uma memória coletiva que sirva para a luta por reivindicação de justiça, memória e verdade.

Amarildo, presente!


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