
por Patrick Melo
Não diferente dos anos de escravização, a engrenagem colonial, atualizada e recrudescida a partir da ditadura militar-empresarial, trouxe consigo leituras, construções e equipamentos dando sentido de ordem a partir da perspectiva ideológica capitalista e militarizada, para manter a nação longe do risco da subversão comunista.
A ordem militar-empresarial que durou 21 anos foi azeitada por uma ideologia, segundo o Dossiê LGBTI+ do Brasil da Race Equality, permeada por valores conservadores e uma perspectiva LGBTIfóbica, que via a diversidade sexual e as possibilidades de identidade de gênero (ainda que não nomeada dessa maneira à época) como relacionadas à subversão. Essa associação das identidades LGBTI à subversão foi o que justificou as repressões perpetradas à época. Por isso, foi acentuada uma visão de Estado que enxergava as pessoas LGBTI como seres nocivos, perigosos, contrários à família, à moral e aos bons costumes, o que legitimava a violência contra essa população.
Mais de 30 anos após o fim da ditadura militar-empresarial, mesmo em período de redemocratização, os territórios – territórios corpos negros, ou seja, de favelas e periferias, têm sido sistematicamente violados pelo Estado. Para além do controle do território pelas polícias que remontam e atualizam práticas históricas da ditadura e portanto coloniais, a ausência de aparelhos eficazes de saúde, educação, saneamento básico, transporte, assistência e todas as políticas necessárias para se manter a dignidade dita humana é a realidade dos territórios negros do Estado do Rio de Janeiro.

A IDMJR tem lançado inúmeros dossiês e boletins denunciando a atual política de segurança pública na Baixada Fluminense e nas favelas e periferias, com recortes de gênero e raça. Desaparecimentos forçados, feminicídio, operações letais, chacinas, racismo religioso têm sido alguns de nossos temas abordados e nosso posicionamento sólido é de que o Estado tem sido o grande executor das violações da sociedade, a partir dos mandos e desmandos de uma estrutura capitalista que lhe sobrepõe, se utilizando de princípios estruturais do racismo e do patriarcado, sendo o Estado terrorista por essência, em sua ação ou omissão.
A partir de nossa sistematização e tratamento de dados das mais variadas plataformas, dossiês e publicações, nos demos conta de que, o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, com alto índice de denúncias de LGBTfobia a redes próximas, não produz dados suficientemente capazes de traduzir a realidade de violação destas populações. Nos deparamos com relapsas publicações sobre violências contra pessoas LGBTQI+ na internet, sempre brancas, com acesso a contatos que permitem visibilidade, mas sempre que nos deparamos com pessoas LGBTQI+ pretas, são sempre notícias de morte, quando ocorre a veiculação dos casos.
Partindo de nossa análise, junto com o Grupo Conexão G, estamos iniciando o projeto LBTQI+fobia e Segurança Pública – a violência perpetrada por agentes de segurança pública em corpos da LGBTQI+ negres e de periferias.
Pervertido, mal amado, menino malvado, cuidado! Má influência, péssima aparência, menino indecente, viado. O trecho da música de Elza Soares (in memorian) denuncia a latente realidade de violações não apenas aos meninos viados, mas de forma geral em corpos e corpas LGBTQI+. A afirmação de se considerar humana/o, cidadã/o é irreal em todos os sentidos. A não ser pelas duras tarjas sociais colocadas sobre si, os corpos, as manifestações do ser, a tentativa de se performar o que é tem sido historicamente o passaporte para enfrentar o peso de carregar o título inerente de subversão e inimigo da ordem, da família e dos bons costumes, e portanto, alçados como inimigos da nação e da branquitude, alvo das mais diversas violações da polícia, da política de segurança pública, do Estado.
As populações LGBTQI+, sobretudo negras, de favelas e periferias, são corpos políticos apenas por existir, em territórios militarizados. O adoecimento e morte com violência post morten de Shelida Ayana, o mal súbito de Alessandra Makeda, o assassinato de Dandara em praça pública, a execução de Luana Barbosa espancada por policiais até a morte na frente de seu filho… Nenhuma destas mortes estão desconectadas e nos questionamos: onde estão as outras que tombam diariamente? Onde estão os dados e registros de abuso e violação policial contra pessoas LGBTQI+ negras, de favelas e periferias? O Estado dará conta de tratar essa violência?