
por Nívia Raposo e Monique Rodrigues
A possibilidade de extravasar a opressão social, cultural, econômica e histórica que a população negra, sobretudo das periferias, subúrbios e favelas, encontra na celebração do carnaval foi bloqueada durante esses dois anos de pandemia mundial do novo Coronavírus. Os quatro dias de folia representam para a maior parcela da população brasileira uma forma de relação entre a transgressão e a liberdade que a vida cotidiana, estruturada no racismo e na imposição da violência de Estado, define como não direito. A maioria da população preta se entende como “sujeito dezautorizado”, tal qual Lélia Gonzalez mencionava. Nesses dois anos sem carnaval transbordaram episódios de racismo, violência polícial, assassinatos e prisões de negros e negras, banalização da LGBTfobia, intolerância religiosa, desaparecimentos forçados, dentre os mais absurdos ainda inomináveis.

Alguns episódios de manifestação de rua liderados pelos diversos movimentos sociais e movimentos negros tentaram mostrar como a vida da população afrodescendente, pobre e periférica é tratada no lugar da descartabilidade dos corpos, lutando historicamente para isso ganhar visibilidade. Mas chegou o carnaval…
Nesse ano de 2022, chamado nas ruas de “ano da volta do carnaval” a gente pôde observar e, principalmente pela agitação que os sambas enredos com temáticas afro brasileira trouxeram, a função primordial das escolas de samba na produção de uma cultura de resistência como a que se fundamenta na ação cotidiana da vida prática. Podemos dizer que voltaram às raízes, sem perder o glamour. O trabalho nos barracões, as mobilizações pela defesa do samba nas quadras, a dedicação das classes de trabalhadores do carnaval, os ensaios de rua, a união entre os componentes das escolas que moldam um cenário de ajuda mútua muito comum nos territórios marginalizados pelo Estado e criminalizado pelas elites econômicas, ilustraram de forma direta os refazimentos da resistência que não é contabilizada como parte de uma cultura negra mas que espelha a história da existência na diáspora brasileira a própria noção de construção do resistir.
As escolas de samba cumprem um papel importantíssimo nesse cenário, e voltando ao que se costumou chamar de reafricanização do samba, trouxe para a Marquês de Sapucaí narrativas de contextos diversos sobre negritude no Brasil e a inventividade da adaptação diante a anulação da vida como esplendor. Entretanto, é fundamental ressaltar que a presença dos povos originários também se faz resistência, tendo uma atuação voltada para eles mesmos como epicentro das demandas e das respostas para elas. Indígenas e afrodescendentes no Brasil do constante genocídio foram narrados nos desfiles de 2022 como povos em constante reinvenção das suas capacidades de enfretamento e luta.
Porém as hierarquias inabaladas que solidificam o Brasil colonizador marcaram essas resistências, da ação cotidiana, como um lugar de menor valor social no cálculo geral das histórias que são legitimadas para se falar sobre resistir. O curso silencioso dos que resistem no dia a dia tem pouco espaço mediante as reflexões acadêmicas ou aos conteúdos digitais. A atualidade impõe uma lógica cruel de legitimação por visualização que não dá conta de contemplar a presença da maioria, relegando aos poucos representáveis um lugar de fixação da história que não alcança a grandiosidade do que as pessoas estão formulando como metodologia de vida coletiva.
Os homens que empurram os carros alegóricos são todos homens negros que tem a exata noção de espaço, tempo e limites da sua atuação para fazer a passagem pelo sambódromo. As mulheres que trabalham nos camarotes são na sua maioria mulheres negras, que encontram a fresta entre servir e assistir sua escola passar, sendo quase invisíveis aos olhos dos que estão nos entornos apenas divertindo-se. Os garis, homens e mulheres, cumprem um papel essencial dentro e fora do mundo do samba, pois eles organizam com precisão a limpeza entre as escolas, durante os desfiles e depois quando tudo termina. Os ambulantes no entorno são verdadeiros tem tudo na hora para oferecer o atendimento das necessidades e garantir uma experiência de alegria.Neste cenário o mundo do samba mostra que festejar é resistência.
Como refletir sobre este carnaval sem falar da pessoa que foi ESTAMIRA, a mulher negra, catadora do lixão do bairro de Jardim Gramacho em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, e que foi rememorada por suas falas marcantes sobre o existir na resistência. Assim como inúmeras referências sobre resistência negra, Estamira aparece como personagem em algumas histórias, mas o olhar crítico precisa identificar esta como uma identidade cultural da Baixada que escancara que resistir para pretos e pretas, é luta diária por necessidades básicas. O mundo do samba mostrou que as pessoas que resistem tem uma cara que existe nas ruas, a voz da resistência foi cantada como ponto de macumba para lembrar que a resistência tem o caminho da evocação, a cor do resistir se transformou em negritudes e mostrou a capacidade infinita da cultura negra na configuração dos territórios de enfrentamento onde a coletividade se solidifica.
Dentre os quesitos apresentados, todas as escolas cumpriram um importante papel. Ser didático. Fundamental ser pedagógico nessa conjuntura. Ensinar a não ter medo do desconhecido. E mostrar que a luta se faz no dia a dia.
Contudo, a história negra tem sempre uma tragédia anunciada, e uma criança preta morreu no contexto desse espetáculo. Assistia tudo ao longe. Não estava num dos luxuosos camarote. Com certeza estava ali assistindo com encanto os enormes carros alegóricos, observando de longe a riqueza das fantasias, talvez sonhando ser um destaque num carro alegórico desses. A família de Raquel Antunes e de vários outros da classe trabalhadora foram mencionadas nas entrelinhas dos sambas. O sentimento de pertencimento é importante nesse momento. Mas, a dor da tragédia ficará com essa nova família pobre, que chorou e vai chorar para sempre essa perda. E o show…o show continuou e é quase impossível não perceber que poucas pessoas que estavam participando do “maior espetáculo da Terra” foram empáticas com a situação dessa família. A pandemia colocou de castigo uma parte da população que vive do mundo do carnaval. Foram dois longos anos de perdas de músicos, compositores que chamamos de poetas do samba, as velhas guardas, baianas, passistas…quantas perdas. O carnaval de 2022 voltou pedindo respeito ao povo preto. Pediu àgò e veio emocionando. Que todos esses ensinamentos não sejam esvaziados, não se pulverize pelo caminho, que nosso povo perceba a força que tem. Queremos nosso povo em todo marquês de sapucaí, não só apresentando o espetáculo, cantando… seja riscando a passarela com muito samba no pé, seja na bateria fazendo maravilhosas paradinhas, varrendo a pista ou servindo nos camarotes. Tudo isso é edificante sim e não significa ser menos. Porém, também seria lindo essa apresentação para camarotes empretecidos. Enegrecer outros espaços é preciso para ontem, para já. Não podemos ser lembrados somente em datas específicas. Precisamos transformar com afetividade. Somos maioria e merecemos estar nos palcos e nas platéias de outros setores dessa sociedade. Inclusive julgando as nossas agremiações com imparcialidade e afeto que povo preto merece.
Neste caldeirão onde tragédias costuram as bordas da resistência o samba se mostrou linha entre pontos que são capazes de firmar as coletividades como maior triunfo das periferias, favelas e subúrbios.