
Por: Juliana Farias
Me somo como aliada, nessa campanha 8M das Pretas organizada pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, trazendo de forma breve dois aspectos sobre violências que atingem as mulheres para refletirmos juntas. O primeiro pode ser resumido na seguinte frase: falar sobre estupro é falar sobre a história do Brasil. Já o segundo aspecto pode ser resumido em outra frase: discutir violências que atingem as mulheres é, necessariamente, discutir militarização.

Ambos os aspectos caminham conectados. A invasão de um território por homens brancos, funcionários de um rei português (incluindo nesse grupo homens do Exército e da Igreja Católica) foi divulgada por séculos como um descobrimento – e assim foi divulgado o mito de origem da história do Brasil, do ponto de vista do colonizador. Os argumentos utilizados na época da invasão pelos portugueses passam pela necessidade de civilizar selvagens que habitavam essa terra, batizar e catequizar esses seres sem alma, alfabetizar na língua do colonizador, já que as línguas locais não eram reconhecidas, educar conforme a pedagogia europeia, marcada pela submissão, pela obediência, para melhor controlar quem quer que fosse que habitasse aquele território. Nesse processo de invasão, os corpos também são vistos como territórios – logo, na ótica de quem invade, tanto um quanto outro podem ser violentados, abusados e explorados de variadas formas.
Nesse sentido, o estupro das mulheres indígenas foi (e ainda é) parte integrante do genocídio de diversas etnias cujas habitações haviam sido construídas no litoral das regiões de interesse da coroa portuguesa. A partir da chegada dos primeiros navios que traficaram pessoas negras de diferentes nações do continente africano para o continente sul-americano, o abuso sexual segue sendo parte do conjunto de técnicas do controle exercido por homens brancos europeus armados, ou seja: os atos violentos que marcam a submissão de corpos são inerentes aos processos de conquista de territórios.
Com o passar do tempo, essas técnicas se atualizaram e passaram a incorporar orientações oficiais e extraoficiais das forças às quais foi atribuído o poder de polícia – num primeiro momento para proteger família real/nobreza, posteriormente a elite do Rio de Janeiro enquanto capital do império, depois capital da República, depois só Rio de Janeiro mesmo. De Pedro Álvares Cabral à Sérgio Cabral, foram consolidadas técnicas de controle de territórios e corpos, marcadas necessariamente por violências racializadas e generificadas. Os armamentos também foram sendo atualizados, num processo bem mais amplo de produção de “ocupações coloniais contemporâneas” (para usar uma expressão do filósofo camaronês Achille Mbembe) que passou a alimentar um intercâmbio internacional de tecnologias de guerra.
É nesse contexto que o Brasil passa a importar equipamentos bélicos produzidos pela parceria Israel-Pentágono, por exemplo. Armas e técnicas utilizadas contra a Palestina são vendidas à Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro para serem utilizadas durante operações e incursões nas favelas e periferias. Enquanto lá uma Faixa de Gaza delimita as fronteiras físicas entre quem é visto como violento e quem de fato produz violência, no Rio as faixas de gaza se multiplicam e são alvo de infinitas ações governamentais militarizadas – seja via governo estadual ou federal. De um Cabral à outro, a construção de um inimigo que precisava ser combatido se fortaleceu e deixou tudo organizado para a eleição de Witzel, que logo divulgou a orientação institucional do poder executivo: “A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”. Antes de sair via impeachment (por crimes de responsabilidade que nada tiveram a ver com mandar atirar na cabecinha) e deixar o vice no posto, fez questão de participar de uma operação, dentro de um helicóptero da Polícia Civil, na qual agentes da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) efetuaram disparos de dentro do mesmo helicóptero.
Helicópteros, caveirões aéreos e terrestres, blindados de variados tipos apavoram como todas as máquinas de guerra utilizadas durante invasões dos territórios de favelas e periferias urbanas, mas junto com esse poderio bélico, as antigas técnicas permanecem: cada chacina onde homens jovens negros são executados sumariamente ocorre no mesmo mês, na mesma semana ou no mesmo dia em que mulheres são assediadas, torturadas e/ou estupradas por agentes armados do estado. A invasão dos territórios e dos corpos são parte das mesmas ações militarizadas. O estupro é tão institucionalizado quanto o genocídio: a violência sexual é parte do mesmo conjunto de técnicas da violação produzida com arrombamento da casa via pé na porta – territórios, habitações e corpos são invadidos nas ações militarizadas.
Importante lembrar que Angela Davis denuncia a institucionalização do estupro nos Estados Unidos. Qualificando com precisão o encorajamento do estupro de maneira sistemática enquanto política não escrita do Comando Militar americano. Sua análise sofisticada nos ensina que “a escravidão se sustentava tanto na rotina do abuso sexual quanto no tronco e no açoite” e que o “racismo sempre encontrou forças em sua habilidade de encorajar a coerção sexual”. Não à toa Davis se refere ao estupro como “arma de terrorismo de massa extremamente eficaz”. Arma que portanto, é tão produtora desse contexto violento militarizado quando fuzis e demais armamentos que efetuam disparos.
A penetração do corpo de uma mulher por um membro do batalhão não pode ser vista como menos grave do que a penetração do corpo do homem por uma bala de um fuzil da corporação – visto que ambas as práticas fazem parte do mesmo conjunto de tecnologias governamentais para controlar corpos, populações e territórios; são parte dos mesmos processos de ocupação e conquista de territórios realizados sob o argumento da “pacificação”, assim como constituem práticas rotineiras da administração burocrática de corpos por diferentes segmentos de Estado. As invasões dos territórios, das casas e dos corpos se atualizam no detalhe da comida roubada pelo PM de dentro da geladeira; na criança que fica indignada porque o PM comeu o bolo de chocolate que a mãe tinha acabado de fazer; na moradora que tava de camisola quando os soldados arrombaram a porta da sua casa. Esse tipo de violência se enraiza no cotidiano: são invadidos os territórios, são saqueadas as casas, são penetrados/perfurados os corpos na guerra que o estado inventa.
O conjunto dessas técnicas necessariamente violentas de controle de corpos, populações e territórios é muito mais complexa, considerando raça, gênero, orientação sexual, geração, dentre outros marcadores da diferença. A elaboração deste breve texto traz apenas um incentivo para que continuemos atentas a essas questões, compreendendo que os processos de generificação, racialização e territorialização das violências envolvem tanto ações espetacularizadas como ações quase invisíveis – aquelas que não são registradas em vídeo para serem denunciadas, aquelas que focam guardadas na memória de quem foi violentada.
E por ser institucionalizado, esse processo de violências militarizadas marcam também outras esferas administrativas cujas hierarquias também obedecem uma lógica bélica que é necessariamente binária, que divide cidadão de bem / bandidagem, homens / mulheres, favela /asfalto e usa essa mesma lente para classificar pessoas, localidades e, consequentemente, as denúncias de violações de direitos. São infinitos os relatos de mulheres que foram estupradas, agredidas, assediadas e que ao procurarem uma delegacia especializada não conseguiram formalizar suas denúncias, tiveram seus relatos desacreditados ou foram elas próprias responsabilizadas pelas violências que sofreram, ou ainda, pra piorar, foram assediadas por agentes policiais homens.
Que possamos caminhar juntas, reconhecendo nossas diferenças para não produzir apagamentos e reconhecendo também a multiplicidade das técnicas militarizadas produzidas para controlar, neutralizar, asfixiar pessoas, regiões e movimentações consideradas ameaçadoras, indesejáveis, não-civilizadas. Que nossas vozes dissidentes sejam amplificadas via tecnologias contracoloniais e que a luta contra a militarização siga também como mais uma bandeira erguida nas agendas 8M.