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Acácio Augusto 1


Lá vêm os ratos/Sujos e nojentos/Lá vêm os ratos/Acabar com o sossego Com motivo e com razão/Temos ódio no coração

Restos de Nada, 1979

No dia 25 de maio de 2020, em território estadunidense e com uma onda de infecções por Covid-19 espalhada pelo planeta, um fato tido como corriqueiro da brutalidade policial provocou um importante deslocamento nas lutas contra os dispositivos de segurança.  Um homem negro, George Floyd, foi executado por meio de estrangulamento por um policial branco em Mineápolis, no estado de Minnesota. Como já havia ocorrido em anos anteriores diante de casos como este, nos EUA, houve forte reação de vários setores do movimento negro, com manifestações em torno do lema Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), criado junto ao movimento em 2013. Mas o pequeno deslocamento se deu pela emergência, em meio aos protestos, de uma demanda bem concreta, pontual e imediata: a abolição da polícia². 

Se de um lado, tratava-se de uma demanda não majoritária dentro do movimento como um todo, na medida em que as propostas reformistas da polícia eram mais volumosas e mais vocalizadas; de outro lado, a retomada da proposta de abolição da polícia conseguiu se sustentar para além de pedidos de justiça ao sistema penal em torno do caso específico de George Floyd, disparando riots que chegaram a atear fogo numa delegacia de polícia em Mineápolis e pulverizando a proposta de abolição da polícia para todo o planeta. Um exemplo disto é que, quase exatamente um mês após o caso nos EUA, a revista francesa Lundi Martin publicou em seu número #248, de 26 de junho de 2020, o “Manifesto pela supressão geral da Polícia Nacional”, não apenas conectado aos protestos nos EUA, mas em repostas às violências regulares contra as manifestações dos “Coletes Amarelos³” e a regular violência da polícia republicana francesa, especialmente na periferia de Paris e contra pessoas racializadas.

Esses debates do 8 To Abolition chegaram aqui no Brasil, onde a proposta já era discutidas em alguns ciclos de movimentos abolicionistas penais e grupos de pesquisa universitários. A campanha da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR)4, para qual esse breve texto se destina, engrossa a urgência em se colocar a abolição da polícia no Brasil. Urgência irrefutável na medida em que o país tem uma das polícias mais violentas do planeta, sendo a polícia que mais mata e mais morre no mundo. A proposta desse escrito é destacar alguns pontos iniciais de como podemos constituir uma análise das polícias sem cairmos na armadilha das reformas que sempre repõem as funções e a existência de policiais. 

Para isso, sugere-se, a partir de um curso de Michel Foucault, que precisamos compreender que a polícia é mais que uma instituição, ela é, antes, uma tecnologia de governo que possui uma história vinculada à formação do Estado moderno e aos meios de cuidado e controle da população. Assim, reitera-se que é preciso questionar a instituição, mas também focar na figura do policial médio em suas funções ordinárias como profissional da violência e “burocrata armado5”. Se partirmos dessa análise que enquadra a polícia como uma tecnologia de governo, podemos ampliar nosso campo de ação para colocar sua abolição, porque essa perspectiva implica percebê-la como elemento das tecnologias de monitoramento, mas também, como construção subjetiva da cidadania contemporânea, ou seja, as formas de fazer, pensar e imaginar do sujeito das democracia securitárias6 hoje: o cidadão-polícia7.

A polícia como tecnologia de governo

Precisamos olhar para as polícias para além das instituições e da imagem da farda. Primeiro porque ela é uma imagem do medo nas ruas, ela se alimenta de um volumoso discurso midiático e do mercado do entretenimento, que sempre descreve os policiais como sujeitos capazes das mais improváveis façanhas e/ou enredados em dramas morais entre o dever e a lei.  Assim, quando ocorre uma crítica à polícia, constrói-se uma armadilha que foca em seus abusos, em sua excepcionalidade na vida e na corporação, como um Capitão Nascimento, do filme “Tropa de Elite”, cheio de dilemas pessoais, violento ao extremo, mas com uma consciência que precisa ser restaurada e senso de justiça que, mesmo sendo duvidoso, lhe confere certa “humanidade”.

Assim, critica-se os abusos de alguns policiais, ou de um grupo nomeado como “banda podre”, em nome da busca por uma polícia honesta, democrática, que respeita os direitos humanos e que não cometeria brutalidades. Desta mineira, se renova um discurso de reforma das polícias e/ou de desmilitarização a partir de imagens sobre os policiais e a polícia que não existem, são exageradas ou simplesmente projetam uma ideal de ordem do reformador que nunca é alcançado. Esse conjunto de reformas e essa imagem da polícia ignora (ou tenta camuflar) que a atividade-fim das polícias é a distribuição legitimada (assimétrica e desigual) da violência em todo corpo social e, em especial, sobre àquelas pessoas consideradas perigosas.

Construir uma crítica à polícia que separe bons e maus policiais é reproduzir as divisões funcionais da própria abordagem policial regular, disseminada pelos inúmeros filmes policiais do mercado de entretenimento que operam pelo binarismo simplório entre good cop vs. bad cop. Como nos filmes, essas imagens do bem e do mau são complementares e existem em função da continuidade da polícia como instituição e como forma política predominante de persuasão. 

A polícia é um conjunto de práticas e tecnologias de cuidado, controle e repressão da população, a mais preciosa tecnologia das artes de governar moderna, capaz de ser a um só tempo individualizante e totalizante, geral e específica, atingindo todos e cada um. Seja em sua emergência ligada à soberania dos Estados, como instrumento da razão de Estado, seja em seu desmembramento moderno como dispositivo de segurança interno da governamentalidade liberal que tem como função promover o bom governo das coisas e das pessoas em favor da preservação e expansão do governo de Estado.

É na forma dessa segunda característica que as práticas policiais, hoje, emergem como meio de promover segurança e seguridade em favor da produção da ordem desigual e assimétrica em sociedade capitalistas baseadas na proteção do propriedade privada e/ou estatal. Ela é composta por um conjunto muito complexo e heterogêneo que articula formas de promover a saúde pública (medicina social), intervenções nos planos e reformas urbanas (planejamento das cidades) e instrumentos de regulação da força de trabalho (formas de controle e cuidados dos trabalhadorxs, voltadas para o aumento da produtividade).

Nesse sentido, a história das polícias é a história de tecnologias de governo que vão muito além de sua forma contemporânea reconhecida unicamente nos aparelhos repressivos de Estado e na figura de um homem armado e fardado ou de uma tropa de intervenção ostensiva espalhada pelas ruas ou concentrada contra um grupo de pessoas em uma manifestação. A polícia, em sua história, se relaciona aos saberes como a sociologia, a ciência política e a economia política. 

Como nos conta Michel Foucault, em curso de 1977-978, “a partir do século XVII, vai-se começar a chamar de ‘polícia’ o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado. Em outras palavras, a polícia vai ser o cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma relação móvel, mas apesar de tudo, estável e controlável entre a ordem interna do Estado e o crescimento de suas forças8”. Em poucas palavras, a polícia, que emerge na Europa vinculada ao poder soberano, terá como objeto primeiro o bom uso das forças do Estado dentro de seu território para a promoção do esplendor Estado.

Ela opera de forma direta a Razão de Estado, tendo como instrumento de decifração a estatística, o saber do Estado sobre o próprio Estado. Mas essa emergência da forma-polícia, ou das técnicas desempenhadas pela polícia soberana, passará por mutações, com especificidades e agregação de sabres em países europeus de forma diferente, mas que ao final comporá as formas e funções da polícia moderna ou das formas correlatas de intervenção estatal na sociedades como as existentes nos dias de hoje. Complementarmente às essas formas, nos territórios colonizados pelos Estados-Nação europeus, a especificidade da polícia estará relacionado ao açoite, à brutalidade e à morte em larga escala de pessoas, para o esplendor do Estado colonial.

Seguindo a genealogia do Estado feita por Michel Foucault nesse mesmo curso, que destaca a polícia como elemento decisivo de operacionalização das práticas de governo modernas, veremos que a formação das tecnologias policiais irá agregar saberes específicos e práticas institucionais diversas. Foucault mostra como no território, ainda não unificado, do que virá a ser a Alemanha, a polícia é uma criação da universidade, onde se produzirá uma ciência da polícia.

O autor localiza, entre os escritos que se dedicavam às formas de governo dos súditos, algo que em alemão chama-se “polizeiwissencraft, a ciência da política; essa ciência da polícia que, (…), desde o fim do século XVII até o fim do século XVIII, vai ser uma especialidade totalmente alemã, uma especialidade alemã que se difundirá pela Europa e que terá uma influência capital9”. Paralelo à essa teoria da polícia como ciência política produzida na Alemanha, se desenvolverá, na França, que já possuía um Estado administrativo centralizado com território demarcado, a polícia será concebida e exercida pela emergente burocracia estatal, por meio de decretos e regulamentos voltados ao controle e circulação de bens nas emergentes cidades. Se na Alemanha a polícia é uma criação da universidade, na França ela será uma criação da burocracia estatal a serviço da regulação de bens, pessoas e riquezas.

O importante dessas referências mobilizadas por Foucault não é a coleção de um conjunto de fatos que comporiam uma histórica da polícia moderna. O que justifica retomar essas referências é perceber, genealogicamente, como a polícia tem uma história de formação dentro das relações de poder-saber que vão compor a modernidade: o como essa polícia diz respeito às artes de governar, ou seja, às forma de conhecer e controlar os súditos que não se resumem a um instrumento do judiciário ou ao conjunto de aparelhos estatais. Essa genealogia evidencia as positividades da forma-polícia na formação do Estado moderno. Ela é um dispositivo com funções próprias, objetos e objetivos bem definidos em favor de produzir uma ordem, a regulamentação do comércio, a administração das cidades e a disciplina dos súditos.

Em poucas palavras, a positividade da polícia, nas procedências e proveniências do que será a polícia moderna, é a produção do mundo burguês no sentido histórico desse termo. Essa é a positividade da nascente polícia: produzir a ordem burguesa baseada na propriedade. Paralelo a essas práticas, nas colônias europeias, essa arte de governar e de produzir ordem será acrescida em suas funções da tarefa de caçar os não-súditos: os selvagens da terra e as pessoas para lá levadas como escravos. 

Como resume Foucault, a polícia possuirá uma especificidade de funções descolada da lei, a polícia se ocupa do ordinário, das coisas miúdas, ao passo que a lei deve se ocupar das coisas importantes do Estado. “Em outras palavras, a polícia é a governamentalidade direta do soberano como soberano. Digamos ainda que a polícia é o golpe de Estado permanente que vai se exercer, que vai agir em nome e em função dos princípios da sua racionalidade própria, sem ter de se moldar ou se modelar pelas regras de justiça que foram dadas por outro lado10”.

Essa definição é importante para uma análise, hoje, da polícia como tecnologia de governo, pois, ainda que essa forma soberana da polícia sofra mutações nos séculos seguintes até chegar ao que hoje conhecemos como polícia repressiva, essa independência ou autonomia da polícia em relação à lei se manterá, justificada pela especificidade de suas funções e a necessidade da polícia como forma de intervenção para responder a uma urgência ou a um conjunto de urgência que a lei não foi capaz de prever, a ponto dos próprios policiais se verem como cidadãos de outra categoria, liberados do cumprimento da lei, submetidos à regras e regulamentos especiais que não se aplicam aos demais cidadãos. Diante da dureza da lei, a elasticidade dos controles policiais.

No entanto, essa forma da polícia soberana sofrerá críticas, a partir do final do século XVIII, que produzirão mutações em sua forma, desmembrando funções para outros campos de atuação. As críticas virão de um saber emergente que irá opor a artificialidade da intervenção soberana pelo dispositivo de polícia ao que seria uma espécie de “meio natural” passível de regulação e que se opõe ao Estado de polícia (polizeistaat).

Um grupo ligado desse campo de saber emergente será responsável por articular essa crítica, grupo que é, como dirá Foucault, quase uma seita: os economistas. Esse saber, a Economia Política, irá se referir a um objeto de governo que não é mais o conjunto dos súditos em sua heterogeneidade, mas um campo comum, quase um meio natural, que será a sociedade, ou o que se chama hoje de sociedade civil em oposição à uma sociedade política (o Estado). Essa divisão será possível a partir da emergência de um campo de intervenção mensurável, produzido pelo saber de Estado, a estatística. Esse campo de intervenção é a população, a possibilidade dada pelo saber da estatística e da economia política de tratar o conjunto da sociedade como população, um “corpo-espécie” alvo de controles e cuidados biopolíticos. 

Assim, pela articulação entre o saber da Economia Política e as práticas de gestão da população se desenha uma relação dinâmica nos mecanismos de segurança e seguridade, isso irá produzir o que se entende por liberdade moderna (liberal), marcando, nessa genealogia da polícia, a passagem de uma governamentalidade soberana, por meio da polícia soberana, para uma governamentalidade liberal que dará a forma a polícia moderna, como a conhecemos hoje.

Na verdade, essa governamentalidade emergente no final do século XVVIII junto ao liberalismo, irá desmembrar as funções policiais da soberania em gestão da população por meio de políticas urbanas e a medicina social, por um lado, e formas de intervenções direta e repressivas por meio de instrumentos que impedem a desordem, a polícia repressiva tal qual conhecemos hoje. “Prática econômica, gestão da população, um direito público articulado no respeito à liberdade e às liberdades, uma polícia com função repressiva. (…) Quatro elementos que vêm se somar ao grande dispositivo diplomático-militar que, por sua vez, não foi modificado no século XVVIII11”. Temos aí, de forma resumida, o conjunto de funções do Estado moderno por meio de tecnologias políticas que vão muito além da intervenção estatal direta.

Finalmente, eis porque, ao se propor a abolição da polícia, precisamos captar a polícia para além da instituição e para além da farda e dos fardados. Compreendê-la como uma tecnologia de governo e acompanhar suas metamorfoses na história, nos põem em alerta contra os discursos reformadores e os críticos de determinada conduta policial tida como abusiva, pois estes apenas promovem uma nova polícia, a renovação dos cuidados e dos controles.

Essa crítica perpetua o jogo de condutas e contra-condutas que produziram as mutações da polícia soberana em um conjunto de práticas de governo biopolítico acrescido da polícia repressiva como dispositivo de segurança para manutenção da ordem interna. A abolição da polícia deve ser um combate contra a razão governamental, contra o Estado enquanto maneira de fazer e modo de pensar, o Estado como categoria do entendimento. Um movimento anti-polícia que é, também, antipolítica, compreendendo a política como um conjunto de técnicas de governo de uns sobre outros. Fora isso, a crítica à polícia será apenas o anúncio de uma nova polícia ou do desmembramento de práticas de contenção com outras nomenclaturas.

O policial hoje e uma breve nota sobre o antirracismo moral 

Dando um salto temporal e geográfico, foquemos na figura do policial hoje. Sempre que se fala e se escreve sobre a polícia se é tomado por imagens midiáticas ou por falsificações que consideram apenas as funções legais das polícias estabelecidas pela legislação. No entanto, a polícia, seja como instituição, seja como função ou mesmo como forma de conduta, se multiplicou de maneira jamais imaginada nos dias de hoje. Não há um só lugar que se vá hoje, sem que se encontre alguma modalidade de polícia ou condutas policiais das mais variadas. Ao mesmo tempo, a mentalidade policial de espalhou de tal forma, que criar uma polícia se tornou a primeira solução que pessoas e grupos sociais pensam diante de um problema, mesmo quando esse problema é a própria polícia, ao ponto de termos hoje a polícia da polícia.

Peguemos um brevíssimo exemplo dessa multi-presença da polícia na vida de todas as cidadãs e cidadãos. Na Constituição Federal brasileira, o artigo 144, do Capítulo III, versa sobre a segurança pública, seus meios e funções. Nele há uma lista de diferentes polícias: “I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares”. Desse artigo constitucional e dessa lista de polícias, derivam regulamentos, funções, protocolos, recomendações, códigos de ética e de conduta e toda uma projeção de como deveriam agir e quais seriam as funções de cada uma dessas polícias.

Some-se a essa lista as polícias privadas legais, empresas de segurança e defesa de patrimônio, e as polícias ilegais, também empresas de segurança para defesa de patrimônio que compõem o regime dos ilegalismos, chamadas de milícias e/ou facções criminosas. Uma variedade infinita de polícias e mesmo assim ninguém está a salvo, ao contrário, todos e todas são suspeitos e suspeitas e todos e todas são convocados a policiar as condutas de si e dos outros, chegando assim à disseminação do cidadão-polícia, pois a sua forma de atuação política e vida pública está vinculada às práticas e controles policiais. E, mesmo assim, com tanta polícia, os chamados “crimes” ou “conflitos com a lei” seguem ocorrendo aos montes, mas não só, essa variedade de polícias abrigam os agentes da violência letal que, quando se torna incontroláveis ou ultrapassam o limite (bastante elástico) do tolerável, as primeiras soluções são sempre de criar a polícia da polícia ou outras formas de judicialização das condutas e da vida.

Por fim, temos diversos institutos, ONGs, grupos de pesquisa universitários e até movimentos de defesa de direitos humanos, que ao se deparar com a violência policial, não apenas se negam a ver a violência como prática inerente à instituição policial, como criam formas de combate à essa violência que mimetizam as tecnologias policiais: protocolos de atuação, regulamentações e práticas de monitoramentos.

São ações que, além de renovarem a crença nos controles policiais, tornam-se ponto de apoio para expansão das polícias e dos dispositivos de segurança12. Por isso que, ao se colocar a questão da abolição da polícia, se recusa a via gradual ou de reformas não por questões de posicionamento político-ideológico puro e simples, como se fosse uma capricho, mas por decisão de ação tática e firmeza de objetivo em ver cessar de vez a violência das polícias. Pois seguir sempre pelo menos pior virou a condição de preservação e expansão dos dispositivos de segurança e da continuidade do sistema justiça criminal, com sua seletividade penal assassina, para os quais a polícia repressiva moderna se apresenta como elemento terminal de intervenção e ação.

Resta uma última questão: como esse complexo conjunto tecnológico de cuidado, controle e repressão produz tanta morte? Mesmo pergunta colocada por Michel Foucault diante do biopoder como tecnologia que “faz viver e deixa morrer”. E a reposta é a mesma e inequívoca: o que permite que um poder que faz viver, produza a morte é o racismo de Estado. Este produz os sujeitos que, em nome da vida e em busca da produção da ordem, devem ser eliminados ou entregues à morte lenta sempre em confronto com essa ordem estabelecida. Nesse sentido, não é fortuito que o 8 To Aboltion tenha surgido na esteira dos protesto contra a execução George Floyd por um policial. A polícia é o operador direto desse dispositivo de intervenção mortal sobre alvos racializados.

Não se trata de desvio de conduta do policial ou excesso de força na aplicação de um protocolo de abordagem, é o funcionamento do dispositivo. Qualquer discurso antirracista que ignore esse funcionamento é mera objeção moral que descreve o racismo como uma espécie de desvio ético a ser corrigido pela prevalência de um ideal moral que condena o racismo. Por isso, essa posição se refere muitas vezes às condutas racistas como preconceito a ser ajustado com algum tipo de conscientização ou sanção (penal ou social) de moralização e ajuste de conduta.

  A polícia, historicamente, é uma tecnologia política moderna que opera, simultaneamente, o poder soberano de matar e a gestão biopolítica da vida de cada cidadão e do seu conjunto como população. Desde a emergência da racionalidade neoliberal, nos anos 1970, sua face soberana da morte vêm se intensificando em processos nomeados como militarização, superencarceramento, judicialização da vida, pacificação de territórios urbanos empobrecidos, como as favelas, ou de países inteiros, como o Haiti e a Síria, levando mais uma vez a biopolítica, cuidado da vida, ao seu paroxismo da morte em larga escala. No entanto, diferente de meados do século XX, quando essa biopolítica ao ser levada ao paroxismo redundou em regimes autoritários e genocidas como nazismo alemão e o fascismo italiano, hoje, o poder soberano de matar, que se faz por meio do racismo de Estado, aprendeu a ser democrático. Ele opera, nas democracias, pelo dispositivo de segurança policial tornado transterritorial ao se fundir com do dispositivo diplomático-militar13. Por essa colonização da política pela segurança, que dispensa a formalização de um regime autoritário ditatorial, nomeamos essa forma que caracteriza governos em todo planeta como democracias securitárias.

Assim, como dispositivo de segurança em democracias securitárias, portanto, racistas, a polícia opera sua política de controle e morte para além da instituição e dos sujeitos que a compõem. Ela produz a ordem como segurança do vido no planeta, uma ecopolítica14. E vivo, aqui não é só a categoria “humano”, mas todo vivente útil e produtor de obediência e de ordem, tudo que se considera bom e ordeiro. Aos viventes que não correspondem à essa produtividade ordeira, o racismo de Estado atravessa seu corte assassino e mata ou deixa morrer. 

Nas atuais democracias não existe antirracismo que não passe pela abolição da polícia, esse é o desvio que se espalha pelo planeta como afirmação da vida livre a partir dos atos contra a execução de George Floyd, mas não só desses atos, um olhar atento verá que em todo planeta as pessoas odeiam a polícia assassina. Fora desse embate vital que visa a desativação do dispositivo de segurança, o dispositivo diplomático-policial, o que se tem é uma retórica moral do racismo como preconceito e desvio de conduta. Temos que ir além disso se quisermos parar de contar cadáveres de pessoas racializadas, seja numa periferia de São Paulo, numa favela do Rio de Janeiro ou em algum lugar do Soweto, em Johanesburgo; seja num banlieues, em Paris, nas ruas de Mineápolis ou na Faixa de Gaza, na Palestina.

A urgência em abolir a polícia está na urgência em estar vivo! A urgência da afirmação da vida como antipolítica em embate com a política soberana da morte do racismo de Estado. 

Não queremos mais a maldita polícia!


 1Professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP, onde coordena do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Interacional de Tecnologias de Monitoramento), e no Programa de Pós Graduação em Psicologia Institucional da UFES. Contato acacio.augusto@unifesp.br 

2Sobre isso, ver os oitos pontos para abolição, in https://www.8toabolition.com/. Consultado em 28/03/2021.

3O LASInTec traduziu e publicou, com uma nota introdutória a partir do Brasil, desse manifesto, disponível aqui:  https://lasintec.milharal.org/files/2020/08/Boletim-AntiSeguran%C3%A7a-n1-1.pdf Consultado em 28/03/2021. 

4Ver https://dmjracial.com/ Consultado em 30/03/2021.

 5“Burocrata armado” é uma designação cunhada pelo antropólogo anarquista para se referir à função ordinária de um policial, in David Graeber. The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy. New York: Melville House, 2015.

6Sobre a noção de democracia securitária, ver Acácio Augusto e Helena Wilke. “Racionalidade neoliberal e segurança: embates entre democracia securitária e anarquia”, in Margareth Rago e Mauricio Pelegrini. Neoliberalismo, feminismos e contracondutas. Perspectivas fouacultianas. São Paulo: Intermeios, 2019, pp. 225-245. Disponível em: https://www.academia.edu/42444431/Racionalidade_neoliberal_e_seguran%C3%A7a_embates_entre_democracia_securit%C3%A1ria_e_anarquia

7Sobre a polícia associada às tecnologias de monitoramento e à constituição do cidadão-polícia, ver Acácio Augusto. Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens. Rio de Janeiro: Lamparina, 2013 e Edson Passetti et. ali. Ecopolítica. São Paulo: Hedra, 2019.

 8Michel Foucault. Segurança, território, população. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 421.

9 Idem, p. 427.

 10Idem, ibidem, 457.

 11Michel Foucault. Ibidem, 2008, p. 476.

12Para uma exposição longa desses efeitos de expansão, ver Adalton Marques. Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo. Tese de Doutorado.  São Carlos: UFSCar, 2017.

13Sobre a constituição do “dispositivo diplomático-policial”, ver Edson Passetti et. ali. Ecopolítica. São Paulo: Hedra, 2019, pp. 219-257.

14Sobre as transformações da bioplítica em ecopolítica, ver Edson Passetti et. ali. Ecopolítica. São Paulo: Hedra, 2019.

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