
Por Giselle Florentino e Fransérgio Goulart
Desde o processo de invasão do Brasil, passando pelos processos escravagistas, foi se criando por parte do Estado a distinção de cidadão de bem e inimigos públicos. Em que o cidadão de bem colabora com o Estado e exerce sua cidadania de forma plena e goza de direitos sociais. Por outro lado, foi criado o inimigo público, o alvo a ser confrontado, a parcela da população a ser extinta, a criminalização da pobreza.
A polícia está a serviço da dominação capitalista e historicamente utiliza a violência como instrumento repressivo e de coerção contra os trabalhadores/as, contra a juventude, contra os movimentos sociais e sobretudo contra a população negra. A polícia possui uma função social de repressão, de coerção, de controle de massas.

O papel do Estado e seus instrumentos de repressão e controle, bem como, o arcabouço liberal do direito moderno resultou em uma política de vigilantismo dentro da sociedade. Em que são criadas tecnologias de controle e opressão para impedir levantes e insurreições populares, bem como, ideologias de controle individual e policiamento coletivo também fruto de uma influência do próprio cristianismo no Ocidente.
Pachukanis, jurista soviético, mostra que Estado e Direito possuem um caráter de classe e estão ligados ao processo da exploração do trabalho. E que o Estado e Direito não são instrumentos genéricos de domínio classista, pelo contrário, são específicos do modo de produção capitalista. Por isso não é possível pensar o Direito apartado dos anseios do próprio Estado, o sistema de justiça legítima a execução de um projeto político de Estado. E no caso brasileiro, um estado racista, genocida, elitista, patriarcal, cristão e heteronormativo.
Precisamos superar a lógica punitivista e de controle de corpos que orienta toda a vida na sociedade capitalista. Essa incessante vigilância nos corpos é para coibir qualquer tipo de levante do povo contra as opressões do capital. Por isso, pensar em uma sociedade com direito à segurança pública e proteção social para todos e todas é construir uma nova forma de sociabilidade não baseada no controle, na punição e nem na ordem burguesa.
Ressalta-se que o papel da colonização e a imposição de lógicas punitivistas baseadas em um modo de vida cristão deixou marcas profundas nas formas de relações sociais brasileiras, pautadas em relações duais como: o bem e mal, certo e errado, civilizado e bárbaro, céu e inferno.
“As lutas sociais não devem se resumir a derrubada apenas do Governo Bolsonaro e a ofensiva conservadora ultraneoliberal, mas também é uma tarefa histórica romper com essa herança colonial cristã de punição e vigilância“.
(Giselle Florentino e Fransérgio Goulart)
Esse código de conduta baseado na moralidade também desloca o horizonte de lutas sociais, deixando o enfrentamento à questão estrutural: emancipação social e o fim do capitalismo, para o combate aos ditos “inimigos públicos” criado pelo próprio Estado para legitimar suas violações cotidianas e esconder o caráter classista e racista de sua atuação.
O inimigo construído nessa lógica da moral cristã também utiliza o mecanismo de punição como forma de redenção, de superação e principalmente como forma de aprendizado. Não é à toa que as igrejas neopentecostais com o conceito da “salvação eterna” somado à teoria da prosperidade utilizam das ameaças de “punição divina” como forma de controlar e vigiar seus fiéis seguindo uma doutrina específica.
No cristianismo, a partir da lógica do pecador/a, foi fomentada a culpa no âmbito individual, para que essa fosse uma responsabilidade exclusivamente individual, em que dada a soma das punições individuais pudesse ser explicada as catástrofes sociais, como pobreza, miséria e morte. Em que apenas é possível pensar na resolução dessas questões que são estruturais através do perdão divino e da redenção que se dá a partir da vivência do suplício.
Todo esse processo foi construindo uma ideologia de pensar qualquer tipo de resolução de conflitos a partir da punição. Vale aqui ressaltar que o próprio sistema jurídico no capitalismo utiliza-se dessa ideologia, prova disso são os veredictos da dualidade cristã, culpado ou inocente, no próprio direito penal.
A chegada de Bolsonaro ao poder cristaliza essa ideia de punir para salvar, onde cotidianamente vemos com o apoio da sociedade, inclusive de boa parte de favelados e periféricos para propostas de liberação as armas, ao projeto de lei de excludente de ilicitude, de projetos fascistas de afirmar que a genética de determinados grupos determina ele fazer mal ou bem e como a vigilância e o controle é um dos pilares da coerção social.
Estamos assistindo a construção e consolidação desse cidadão polícia, em que as pessoas julgam e condenam seus pares sem nenhum tipo de ponderação com as questões estruturais que fundam a sociedade brasileira. Na realidade, utilizam de arcabouços da cristandade para orientar e definir políticas de segurança pública baseadas na punição, vigilância e controle definidos por conceitos racistas, patriarcais e heteronormativos.
Parece que a máxima do Artigo 11° da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) está em desuso ou caindo no esquecimento seletivo desta sociedade. O artigo 11º diz que “toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente, até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”.
As lutas sociais não devem se resumir a derrubada apenas do Governo Bolsonaro e a ofensiva conservadora ultraneoliberal, mas também é uma tarefa histórica romper com essa herança colonial cristã de punição e vigilância.
Basta de acharmos que com mais polícia, estaremos mais seguros, que com mais prisões a proteção virá, que se pedirmos salvação divina após o pecado for feito construiremos um mundo sem guerras. Precisamos enfrentar as questões estruturais do capitalismo, como desemprego, pobreza, miséria, fome, drogas e proteção não mais baseada em uma doutrinação cristã com suas lógica punitivistas e moralistas.