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por Raquel de Oliveira Sousa*

Não é uma novidade que ao longo da história a utilização de mecanismos e tecnologias como justificativa para o controle da violência. No campo das Ciências Sociais, essa temática foi abordada por uma série de autores (Foucault, 1987; Graham, 2016; Browne, 2022; Ferguson, 2017; Silva, 2022). Foucault (1987) aborda sobre a vigilância e controle dos corpos, trazendo a alegoria do panóptico. Graham (2016) cita a utilização das tecnologias no que o autor conceitua como “urbanismo militar”. Browne (2022) trata sobre as técnicas de vigilância utilizadas contra negros em Nova Iorque no século XVIII, desde necessidade de documentos, textos impressos que descreviam os “fugitivos” até legislações que exigiam que negros andassem com o rosto iluminando.

Com a utilização de câmeras de reconhecimento facial, essa vigilância se potencializa e se associa com a problemática dos acordos público e privado. No Brasil, em agosto de 2023, a prefeitura de São Paulo assinou um acordo milionário para a aplicação da tecnologia de reconhecimento facial[1]. Em Goiás e na Bahia essa tecnologia também está sendo utilizada[2]. O governo do Rio de Janeiro, em junho de 2023 divulgou um edital para a implementação dessa tecnologia, com o valor de aquisição estimado de R$84 milhões[3]. Em setembro do mesmo ano a Polícia Civil lançou um acordo de cooperação com uma start-up, sem grande veiculação dos limites dessa parceria público-privada[4].

No entanto, é preciso destacar que esse controle dos corpos é realizado até mesmo em momentos de lazer e principalmente com corpos negros e periféricos. Browne afirma que “Muitas vezes, as redes de sociabilidade de negros livres e escravizados de Nova York ocorriam sob os olhares vigilantes da população branca, nos mercados e durante os dias de descanso e celebrações de feriado.” (Browne, 2022, p. 66). 

Especificamente sobre as estratégias de segurança para eventos esportivos internacionais podemos citar o livro Security Games (Bennett, Haggerty, 2011) que aborda detalhadamente a utilização das tecnologias, a presença de segurança privava no interior dos estádios e principalmente do caráter financeiro do policiamento e vigilância dos megaeventos, em especial para organizações como a FIFA, por exemplo. O livro aborda sobre o aumento da vigilância por câmeras com identificação facial e monitoramento via satélite utilizado no perímetro de segurança, dispositivos de identificação por rádio frequência nos ingressos, entre outras tecnologias citadas. Os autores (Bennett, Haggerty, 2011) afirmam que a segurança durante os megaeventos é como um laboratório de experiências; sempre utilizando novas ondas de tecnologia. Todavia Bennet e Haggerty (2011) trazem questionamento sobre a privacidade das pessoas envolvidas, como o panóptico tratado por Foucault (1987).

Graham (2016) também apresenta em seu texto que os eventos esportivos internacionais são utilizados exatamente como experiências para o conceito que ele traz de novo urbanismo militar

“O novo urbanismo militar se alimenta de experiências com estilos de objetivos e tecnologia em zonas de guerra coloniais, como Gaza ou Bagdá, ou operações de segurança em eventos esportivos ou cúpulas políticas internacionais. Essas operações funcionam como um teste para a tecnologia e as técnicas a serem vendidas pelos prósperos mercados de segurança nacional ao redor do mundo. Por processos de imitação, modelos explicitamente coloniais de pacificação, militarização e controle, aperfeiçoados nas ruas do Sul do globo, se espalham pelas cidades dos centros capitalistas do Norte. (…).” (Graham, 2016, p. 30, grifo nosso).

A partir dos apontamentos dos autores acima referidos, é possível notar a mercantilização da segurança, principalmente com a utilização de eventos esportivos para tal empreendimento.

No contexto da segurança em eventos esportivos no Brasil, com maior atenção ao futebol masculino brasileiro, tem sido observado um grande esforço para a implementação de tecnologias de reconhecimento facial e biometria nas catracas para acesso aos estádios. A lei geral do esporte, sancionada em junho de 2023, traz em seu artigo 148 a seguinte inscrição:

Art. 148. O controle e a fiscalização do acesso do público a arena esportiva com capacidade para mais de 20.000 (vinte mil) pessoas deverão contar com meio de monitoramento por imagem das catracas e com identificação biométrica dos espectadores, assim como deverá haver central técnica de informações, com infraestrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente e o cadastramento biométrico dos espectadores. (Brasil, 2023).

O controle por reconhecimento facial e biométrico tem o prazo de dois anos para ser implantado nos estádios com capacidade superior a 20.000 torcedores. Todavia, a constituição federal, no próprio art. 5º, no inciso X considera como inviolável o direito de imagem da pessoa (Brasil, 1988) e não desenvolve sobre a garantia de proteção de dados garantida pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Brasil, 2018).

Além da previsão da Lei Geral do Esporte, os ministérios do esporte e o da justiça e segurança pública assinaram um acordo de cooperação juntamente com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), chamado de “Estádio Seguro”, para compartilhamento dos dados registrados nas catracas dos estádios[5].

Tal qual a implementação vem sendo realizada no nível estadual, no Rio de Janeiro, sem uma regulamentação efetiva para os limites do uso dos dados dos cidadãos, assim essa tecnologia vem sendo utilizada nos estádios brasileiros. Até o momento da produção desse texto, mais de 5 estádios brasileiros já estão utilizando a tecnologia de acesso ao estádio por meio de reconhecimento facial e/ou biometria[6]. No Rio de Janeiro, o Maracanã realiza alguns testes desse modelo de acesso, mas sem a efetiva adoção da tecnologia. Em São Januário o reconhecimento facial começou a ser implementado no jogo do dia 21 de setembro[7],  após a assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado com o Ministério Público do Rio de Janeiro. A implementação iniciou a partir dos ingressos de gratuidade e será ampliada de acordo com o cronograma estabelecido.

            A utilização desse tipo de tecnologia, tanto na vigilância da cidade, quanto no controle de acesso aos estádios é problemática. Dentre as questões que devem ser revistas para essa adoção são: o viés racial e de gênero presente em uma tecnologia com uma pretensa neutralidade; os acordos público e privado para a implementação; e quais serão as condições em que nossos dados serão armazenados. Para esse último ponto muitas respostas precisam ser reveladas: por quanto tempo os dados ficarão armazenados? Com qual finalidade? Os dados coletados, serão comercializados para outras empresas? Qual será o método de armazenamento? Esse método terá acesso à internet ficando suscetível a invasões de hackers? A tecnologia está sendo propagada como uma solução que resolverá muitos problemas, no entanto, trazem muitas questões que necessitam de respostas.

* Doutoranda em Ciências Sociais – PPCIS/UERJ, Mestra em Ciências Sociais PPCIS/UERJ, Graduada em História pela UFFRJ – RURAL e Pesquisadora do Laboratório de Análises da Violência LAV/UERJ


  • Referências bibliográficas:

Bennett, C. J.; Haggerty, K. D. (orgs). Security Games: surveillance and control at mega-events. London: Routledge, 2011.

BRASIL, [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,  DF: Senado Federal, 2016. 496 p. Disponível em:  <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf&gt;.  Acesso em: 22 de set. de 2023.

Brasil, 2018. Lei nº 13.709/2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, DF: Senado Federal. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm>. Acesso em: 25 de set. de 2023.

Brasil, 2023. Lei nº 14.597/2023. Lei Geral do Esporte. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14597.htm>. Acesso em: 28 de jun. de 2023.

Browne, S. Todos têm alguma luz sob o sol: luminosidade negra e a cultura visual de vigilância. In: Vida política das tecnologias digitais. Manuela Trindade Viana, Luciana Badin (org). – Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2022.

Ferguson, Andrew Guthrie. The rise of big data policing. In: The Rise of Big Data Policing. New York University Press, 2017.

Foucault, M. Vigiar e Punir: nascimento das prisões. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

Graham, S. Cidades Sitiadas: o novo urbanismo militar. Tradução: Alyne Azuma. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

NUNES, Pablo; LIMA, Thallita G. L.; CRUZ, Thaís G. O SERTÃO VAI VIRAR MAR: Expansão do reconhecimento facial na Bahia. Rio de Janeiro: CESeC. 2023.

Silva, P. P. Racismo através do tecnicismo: dissecando a lógica racial da polícia preventiva. In: Vida política das tecnologias digitais. Manuela Trindade Viana, Luciana Badin (org). – Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2022.


[1] Smart Sampa: denunciada por corrupção foi quem abocanhou R$ 588 mi para capturar seu rosto em SP. Disponível em: <https://www.intercept.com.br/2023/08/14/smart-sampa-denunciada-por-corrupcao-capturar-seu-rosto-em-sp/&gt;. Acesso em: 25 de set. de 2023.

[2] Ver os relatórios do Panóptico. Disponível em: <https://opanoptico.com.br/Caso/>. Acesso em: 20 de set. de 2023.

[3] Governo do Rio vai abrir licitação para câmeras de reconhecimento facial e de placas de veículos. Disponível em: <https://extra.globo.com/rio/noticia/2023/06/governo-do-rio-abre-licitacao-para-cameras-de-reconhecimento-facial-e-de-placas-de-veiculos.ghtml&gt;. Acesso em: 25 de set. de 2023.

[4] Polícia Civil do Rio firma acordo de cooperação técnica com start-up de segurança e tecnologia. Disponível em: < https://diariodorio.com/policia-civil-do-rio-firma-acordo-de-cooperacao-tecnica-com-start-up-de-seguranca-e-tecnologia/&gt;. Acesso em: 25 de set. de 2023.

[5] Governo Federal e CBF anunciam o lançamento do Projeto Estádio Seguro. Disponível em: <https://ge.globo.com/df/noticia/2023/09/20/governo-federal-e-cbf-anunciam-o-lancamento-do-projeto-estadio-seguro.ghtml&gt;. Acesso em: 25 de set. de 2023.

[6] Allianz Parque – Palmeiras: reconhecimento facial; Ligga Arena – Athlético Paranaense: biometria digital e testes para reconhecimento facial; Arena MRV – Atlético Mineiro: reconhecimento facial (não inaugurado); Hailé Pinheiro – Goiás: reconhecimento facial; Arena do Grêmio – Grêmio: biometria digital (somente no setor da geral); e Estádio de São Januário – Vasco: reconhecimento facial.

[7] Vasco inicia testes para reconhecimento facial na partida contra o Coritiba. Disponível em: <https://vasco.com.br/vasco-inicia-testes-para-reconhecimento-facial-na-partida-contra-o-coritiba/&gt;. Acesso em: 25 de set. de 2023.

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