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Por Cristiano Silva, Joel Luiz e Nívia Raposo

Todo o processo jurídico no decorrer do período colonial, retrata a tamanha crueldade imposta sobre africanos e autóctones escravizados no Brasil. Um sistema segregador e totalmente racista, que defendia os interesses da corte imperial, sobretudo dos donos de terra, nobres e indivíduos influentes na colônia. Diante de uma rede consolidada e impregnada de violência, aplicar as sentenças sobre os corpos dos(as) escravizados(as) mostrava de fato que os aparelhos de justiça não reconheciam esses homens, mulheres e crianças como indivíduos, dignos de direitos, porém os definiam como semoventes em prol do acúmulo e de títulos econômicos. 

O único momento de reconhecimento dessas pessoas como indivíduos, era quando cometiam ações consideradas inviáveis, feriam ou matavam os brancos desumanos escravocratas ao reagirem ante o massacre e a barbárie exigida pelo método escravagista.  Nessa época, as leis vigentes transitavam entre o regime jurídico da coisa ou das pessoas. Uma hora o(a) escravizado(a) é a coisa, em outra a pessoa, tudo para benefício dos latifundiários e a depender dos seus interesses. Na história do sistema jurídico brasileiro toda ação ou reação de uma pessoa negra é credora de uma punição exemplar, independente das circunstâncias. 

Ainda que Luis Gama, tenha sintetizado como deveria ser encarada a reação de um escravizado ao dizer: “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstâncias for, mata sempre em legítima defesa”, sabemos que não era com tal justiça que o ordenamento jurídico encarava o fato. Aliás, qual tipo de justiça poderia existir em um país em que, regido pela égide do capital,  uns são proprietários e outros propriedades?

O modus operandi nas aplicações das sanções nos espaços punitivos, patíbulos, casas de correção e o uso dos equipamentos de tortura, convergiam com o sistema político da época. De modo que, o sistema jurídico e político, eram duas facetas da mesma moeda escravocrata. O que não nos surpreende, afinal, o sistema jurídico é uma construção política. Não à toa entoamos, uma vez mais, que todo crime é um crime político.

Nesse sentido, ao longo de todo o processo histórico repletos de retrocessos, arrastando as correntes de um sistema violento e violador. As constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967 comprovam as dimensões políticas e as intenções dos dominantes em manter o severo controle sobre os dominados. Embora, a carta magna cidadã de 1988 ressalta a importância à vida e aos direitos da pessoa humana, na prática não é o que se vê. 

Seja no período escravocrata, ou com o processo histórico de criminalização de culturas, práticas e/ou territórios racializados, o Estado brasileiro vale-se historicamente de mecanismos legais para controle de corpos negros. O que não seria possível sem a anuência do sistema de justiça. Vale lembrar que o apartheid era legal, tal qual a escravização de modo que, fica claro que a legalidade é uma questão de poder e não, necessariamente, de justiça.

“O escravo que mata o senhor, seja em que circunstâncias for, mata sempre em legítima defesa.”

(Luis Gama)

Hodiernamente, seguimos com toda a herança do colonialismo, todas as estruturas políticas e econômicas reproduzem tais práticas, potencializando o racismo, o preconceito e a discriminação nas interações culturais e sociais. A ausência de um Estado democrático de direitos e a presença maciça de um Estado penal, em áreas historicamente abandonadas e negligenciadas, dando a um grupo o que poderíamos chamar de cidadania negativa, quando o único ponto de encontro com a tutela do Estado é quando da sua opressão.

A gestão pública segue com um projeto necropolítico bem arquitetado onde “CEPs” e “CPFs” tornam-se alvos, por meio do Estado de negação, engrossando as estatísticas da desigualdade social, dos processos penais e dos atestados de óbito. E mostrando que há varias formas de matar, inclusive, dentro da lei.  

As penas impostas pelo Estado sempre se valeram de uma motivação política. A prisão, já uma regra para os demais habitantes das terras tupiniquins, para os negros escravizados eram substituídas por castigos corpóreo, de modo que, aquele corpo-objeto-produtor não se afastasse do trabalho. Já no passado mais recente, em que não falta mão de obra mas tem se um considerável exército de reserva, aposta-se no encarceramento em massa para controlar e retirar do convívio coletivo o corpo negro em excesso, historicamente não quisto.

Os altos índices de encarceramento de um público específico, a clientela do sistema penal, demonstram os rastros de um passado cada vez mais presente. A prisão é um desses instrumentos que rompe com a liberdade, com a dignidade, com diversos direitos e o pior de tudo com a humanidade. Sob égide de estudos e pesquisas, discorreríamos sobre inúmeros autores dos quais tratam do tema.

Contudo, retratam teoricamente os efeitos da prisionização, o dia a dia na prisão é bem diferente. Ouvir o cadeado bater e o ferro do confere entrar em atrito com a grade, a parede mofada e o cheiro peculiar da masmorra afastam quaisquer sinais de esperança.   

O ambiente sufocante, as diversas vozes se chocando, no período permitido, depois das dez da noite o silêncio da saudade domina o local. Dormir e acordar na cadeia, é uma experiência triturante, sobreviver a cada confere é tenso.

Solicitar qualquer coisa ao guarda que não seja responsa corre um grande risco, a canetada rola solta em um estalo pode-se assinar uma parte disciplinar e perdurar o tempo de pena. Não é só a autoridade e as covardias dos guardas que afligem, tem outro elemento, a hierarquia da prisão, o ritmo, o papo ganha proporções gigantescas, pisou fora da faixa a cobrança é severa.    

As relações estabelecidas na casa de pedra são baseadas no papo reto, na fidelidade, na humildade, nada se acha na cadeia, tudo que se encontra tem dono. Logo, a honestidade é o passaporte para a próxima fase, a progressão de regime. Muitas das vezes ficam-se aguardando dias, semanas, meses para progredir, a cada atendimento na defensoria dentro da unidade pode levar de três a quatro meses, na melhor das hipóteses.  Os processos passeiam pelas prateleiras da VEP, do MPERJ no mar processual das indecisões e das decisões.  

As violações começam desde o ato, a permanência e a saída da prisão. 

“O sistema é cruel, levam cada vez mais, irmãos aos bancos dos réus, os sociólogos preferem ser imparciais, e dizem ser financeiro o nosso dilema. Mas, se analisarmos bem mais você descobre, que negro e branco pobre se parecem, mas não são iguais.”

(Racionais Mc’s)

Sob custódia dos policiais o esculacho segue firme, a cara para o asfalto e o cacho humano – diversos corpos algemados juntos, é uma exceção se não acontecer. O corpo é lançado como se fosse uma encomenda, um pacote para o fundo do veículo, na continuação recebe aquela massagem do agente da lei.

No Instituto Médico Legal é só confirmar que está tudo bem. A partir daí, a tranca recebe a pessoa com ausência de saúde, de profissionais da saúde, de visita, o descaso jurídico, pouco acesso à água, alimentação precária, doenças dermatológicas, bacterianas e respiratórias. 

A arquitetura do prédio é torturante e não tem compromisso com a educação, casos frequentes de constrangimentos que ocorrem com os visitantes no momento da visita, ou quando vão deixar a custódia nas unidades, nos intramuros falta tudo, menos as incansáveis violações e as celas superlotadas.

Engana-se quem pensa que ao sair da cadeia a pena acabou. Tais quais as cicatrizes trazidas no corpo negro outrora, a condição de ex presidiário também se perpetua, em sua carcaça social. A perpetuação da sentença apropria-se do cotidiano do sobrevivente, por meio do estigma, do estereótipo, do inesquecível e da sentença social que pesa muito mais do que a do(a) juiz(a). A jurídica tem fim, a social não.

Enfrentar e desviar, diariamente, do projeto da reincidência, proposto pelo Estado é uma tarefa que requer habilidade, apoio e acolhimento, sem essa tríade, cair, novamente, na armadilha histórica do necrogoverno, é uma questão de tempo. 

Afinal, como Racionais Mcs cantam há 30 anos “o sistema é cruel, levam cada vez mais, irmãos aos bancos dos réus, os sociólogos preferem ser imparciais, e dizem ser financeiro o nosso dilema, mas se analisarmos bem mais você descobre, que negro e branco pobre se parecem, mas não são iguais.’


*Cristiano Silva- Enquanto sobrevivente, contribuo no texto com as minhas experiencias no período em que cumpri pena no sistema prisional fluminense. 

Referências: 

Ramos, Arthur.A aculturação negra no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.     

Campello, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil, 2018.

WACQUANT, Loïc. 1999. As Prisões da Miséria. Paris: Raisons d’Agir. 

Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão, Petrópolis/RJ, Vozes, 1977.

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio Janeiro: Revan, 2003.

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