0 10 min 2 meses

Por IDMJRacial


Em vista dos recentes acontecimentos no desenrolar da investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e Anderson Gomes, há motivos para crer que questões de regularização fundiária – pelas divergências na votação do Projeto de Lei n° 174/2016 da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, tenham culminado na morte de Marielle. O projeto de lei em questão visava a regularização fundiária nas regiões de Vargem Grande, Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. 

A delação de Ronie Lessa, que resultou na prisão dos possíveis mandantes do assassinato de Marielle, escancarou também o entranhamento entre milícias, policiais e políticos. Ronie chegou a falar em um dos seus depoimentos que o Rio de Janeiro é muito pior do que os investigadores imaginam no sentido do envolvimento visceral entre milícias, facções e delegacias loteadas, no qual cargos de poder são ocupados por pessoas que foram colocadas por interesses políticos, inclusive por milicianos. 

Ainda no que concerne à morte de Marielle, o fato do pagamento prometido ter sido a promessa de terrenos e construção imobiliária ganha um simbolismo cruel, ao materializar a relação das milícias, policiais, políticos e disputa por terras. A questão fundiária, o direito à cidade e à moradia são palco de disputa territorial por parte de organizações criminosas há décadas, e é preciso ter em mente que a maior parte dos defensores de direitos humanos nos programas de proteção estão ligados a questões fundiárias, territoriais e ambientais, bem como são responsáveis por colocar o Brasil como o país que mais mata ativistas. 

Além disso, é notório que a milícia tem se expandido através do controle de loteamentos e condomínios e a capilarização das milícias na máquina estatal se apresenta como forma de expandir e garantir poder para as milícias, favorecendo a especulação imobiliária e a grilagem de terras. Um grande exemplo é o fato de outro famoso miliciano, Adriano da Nóbrega, ter sido denunciado por grilagem. 

Ademais, é importante contextualizar historicamente a questão do uso e da posse da terra para compreender a fina relação entre a regularização fundiária e a política de segurança pública atual, principalmente a atuação das as milícias. Desde a Antiguidade até a consolidação do modo de produção capitalista, o uso e a posse da terra é parte central da disputa entre classes oprimidas e expropriadas – assistimos uma série de ataques e tentativas de retirar o direito social de acesso a terra e moradia digna em função dos interesses privados em lucratividade, na maioria dos casos mediados pelo próprio Estado que apenas em casos específicos compreende a função social da terra.

A partir do projeto De Olho na ALERJ, construímos um levantamento de proposições legislativas na temática de regularização fundiária entre os anos de 2021 e março de 2024 e identificamos a protocolização de 74 indicações legislativas solicitando ao Poder Executivo que adote as providências necessárias para a regulamentação de imóveis, sendo 89% dos pedidos de regularização fundiária são em áreas da Zona Oeste.

Nesse sentido, vale ressaltar que estas indicações legislativas solicitando ao Governo do Estado que adote as providências necessárias para a regularização fundiária ocorre na vigência do Programa Titula Rio, que entrou em vigor em 2021, sob regime de urgência, com autoria do Deputado Estadual Max Lemos (PSDB), com coautoria de diversos coautores, dentre eles cabe destacar o parlamentar Brazão.

O Programa é executado diretamente pelo Instituto de Terras e Cartografia do Estado – ITERJ, em parceria com o Núcleo Municipal de Regularização Fundiária (NMRF) ou equivalente de cada ente municipal, contudo já existiam marcos normativos sobre o tema, a exemplo da Lei 13.465/17. 

Importa destacar que o Programa Titula Rio, teve a finalidade de reproduzir quase na íntegra o Programa “Titula Brasil”, e recebeu diversas críticas de especialistas pela possibilidade de facilitar a grilagem de terras. O Programa transfere completamente a propriedade da terra para o beneficiário e dá a ele o poder de aliená-la em financiamentos bancários ou vendê-la. Todavia, considerando que os grupos prioritários são famílias de baixa renda, provavelmente não terão condições financeiras de subsistir na propriedade, é possível acreditar que serão estimulados a vendê-la para quem tem maior poder econômico, levando a maior concentração de terras. 

Em nosso mapeamento de proposições legislativas identificamos 74 indicações legislativas distribuídas entre 21 municípios, divididos pelas Regiões Metropolitana (43), Sul Fluminense (13), Norte Fluminense (9), Noroeste Fluminense (2), Baixadas Litorâneas (4) e Centro Fluminense (2). Acrescente-se ainda que, na Região Metropolitana 6 municípios da Baixada Fluminense foram objeto das indicações, a saber: Belford Roxo, Itaguaí, Japeri, Paracambi, Queimados e São João de Meriti. Nos últimos 3 anos, 58% das matérias legislativas sobre regulação fundiária tratam de áreas da região metropolitana do Rio de Janeiro. Nesta perspectiva, importa enfatizar que a Baixada Fluminense tem sofrido com o crescimento das milícias no território, uma vez que a população vem sendo vítima dos ciclos constantes de violência em territórios dominados ou alvos de disputa pelas milícias.

Outro fator relevante é que as indicações foram feitas por apenas 5  parlamentares da Casa, e, dentre eles, 2 se destacam, sendo eles Jorge Felippe Neto (Avante) e Brazão (União), uma vez que ambos computam, respectivamente, 36 e 30 das indicações legislativas, cabendo destacar que Brazão ainda possui coautoria em mais 2 indicações. Portanto, representam sozinhos a quase totalidade das proposições apresentadas, cerca de 96%, enquanto apenas 3 partidos políticos são responsáveis por todos os pedidos de indicações legislativas sobre regularização fundiária, são eles: União, Avante e Podemos.

Conforme o observado, o Deputado Brazão solicitou regularização fundiária, como autor ou coautor, para 36 áreas no período de 2021 e 2024. Destes, 6 se encontram na Baixada Fluminense, enquanto o Deputado Jorge Felippe Neto concentrou suas solicitações nos municípios de Angra dos Reis e Rio de Janeiro, no período de 2021 e 2022. 

Dentre as indicações solicitadas para o município do Rio de Janeiro pelo parlamentar Jorge Felippe Neto, 25 são localizadas na Zona Oeste, 7 em Angra dos Reis e 3 na Zona Norte, espaços de expansão territorial da milícia. Cabe lembrar que, conforme supramencionado, a disputa de terras, motivada pela expansão territorial da milícia na Zona Oeste do Rio pode ter ligamento com o assassinato de Marielle. 

Ainda no que concerne ao tema, chama atenção que Angra dos Reis também seja objeto das solicitações, uma vez que há anos vem sendo alvo de investigações pela expansão da milícia da zona oeste do Rio de Janeiro para o território.  

Diante desse contexto, a recente prisão dos irmãos Brazão, com indícios do envolvimento da Família Brazão no favorecimento de ações da milícia, através da ampliação e flexibilização da regularização de terras em áreas dominadas pela milícia, favorecendo a especulação imobiliária e a grilagem de terras, despertam atenção para o relevante número de proposições legislativas envolvendo solicitações de regularização fundiária do Deputado Brazão. 

A relação imbricada entre segurança pública e a questão fundiária na política pode ser percebida em diversos momentos, inclusive com a presença do empresariado,  a exemplo do evento ocorrido recentemente na Fundação Getúlio Vargas (FGV), intitulado Pacto pelo Rio, cujo objetivo era debater a segurança pública, e trouxe também como questão central a questão fundiária. O seminário contou com a presença de empresários, representantes do Executivo, Legislativo e do Judiciário, comunicadores, jornalistas e especialistas e teve entrega simbólica de título de regularização fundiária em Vila Conchita e Amendoeiras na mesa de abertura, além de ser amplamente debatido nas mesas seguintes. 

Portanto, tais considerações apontam para o fato de que a máquina estatal, que deveria estar sendo utilizada para promover políticas de reforma urbana, reforma agrária, demarcação de terras indígenas e regularização de terras quilombolas, está sendo desvirtuada com o propósito de promover grilagem e expansão dos negócios comerciais e de prestação de serviços das milícias. 

Política Pública pra quem?


Deixe uma resposta