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Por Fransérgio Goulart e Giselle Florentino

A Chacina do Jacarezinho foi mais uma amostra do que o Estado Racista faz e produz com corpos negros, empobrecidos e periféricos. A produção da morte faz parte da fundação do Brasil, desde a invasão dos portugueses até os dias atuais.

A construção do inimigo e de territórios inimigos é construída pelo Estado, legitimada pelo arcabouço jurídico e suas polícias, contando sempre com assídua colaboração da mídia hegemônica racista.

Gostaríamos de destacar pontos que hoje potencializam a produção sistemática de mortes causadas pelas polícias.

A partir da eleição de Bolsonaro e do agora impeachmado Wilson Witzel (PSC), ocorreu a intensificação da política de Segurança Pública baseada no controle das milícias,  assistimos as polícias militares e civil ganhando força política, orçamentária e bélica, um grau de autonomismo pouco visto na história da Política de Segurança Pública do Estado do RJ. Ressalta-se que essa autonomia das polícias não está dissociada da escolha política do Estado, pelo contrário, implementa o projeto político do Estado através do encarceramento em massa e genocídio cotidiano do povo negro.

“Agora vocês vão se fuder, acabou a moleza, é Bolsonaro!” 

(frase denunciada por um morador da Baixada Fluminense quando de uma operação do BAC)

“Podemos fazer tudo agora, com Bolsonaro e Witzel no poder.”

(frase denunciada por morador quando de operação da Core)

Essas frases ditas pelas polícias demonstram todo o poder simbólico e político construído pela chegada desse atual projeto político do Estado, que escancara o ódio aos pretos e aos pobres.

Para além do simbólico, as polícias do Rio de Janeiro ganham autonomia política e bélica dentro do Governo Witzel (PSC), atual Cláudio Castro (PSC), que se inicia com o fim da Secretaria de Segurança Pública, o fim da Corregedoria Unificada e agora o fim do Gaesp.

A Polícia Brasileira é a que mais mata no mundo e está vivendo um período de fortalecimento do seu poder, esse grau de autonomia e determinação política impacta diretamente na produção de chancela oficial da licença para matar. A especificidade deste período atual não está somente nos altos índices de letalidade, mas também na completa, total e irrestrita forma de controle externo, bem como, em uma defesa intransigente de setores do legislativo e judiciário que promovem uma série arbitrariedades inconstitucionais para isentar o abuso policial e proteger uma instituição programada para gerar mortes.

Acreditamos que essa intensificação da autonomia das polícias não está restrita à Cidade Maravilhosa e sim, ganha contornos de um projeto político nacional. Afinal, a bancada da bala do legislativo federal é praticamente uma indústria de proposições legislativas para proteger, isentar e desresponsabilizar as polícias, principalmente com tentativas incessantes de  reduzir o poder do Governo Estadual sobre o controle da Polícia Militar e a Polícia Civil, buscando “ampliar a independência” das corporações em relação aos Executivo estadual, aos quais, as polícias estão subordinadas pelo artigo 144 da Constituição Federal.

Tais proposições legislativas incidem para que os comandantes das polícias sejam  escolhidos com base em uma lista tríplice, bem como, com um mandato fixo de dois anos, só podendo ser exonerados pelos governadores em circunstâncias específicas, com clara justificativa.

Os deputados da bancada da Segurança Pública que lideram a iniciativa no Congresso dizem que o objetivo é livrar os comandantes das forças de “mordaças e pressões políticas”, para que as polícias possam “cumprir sua função com autonomia”.

No legislativo federal há diversas propostas que mudam a estrutura das polícias. Como, por exemplo, a criação da patente de general para PMs – atualmente exclusiva das Forças Armadas,  a escolha dos Secretários das Polícias passará a ser feita pela própria polícia e não mais pela escolha do Governador e até mesmo tentativas de alterações no estatuto das polícias que diminuem a fiscalização e transparência em casos de abusos policiais ou improbidades administrativas.  

Ademais, com o fim da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro via decreto do então governador Wilson Witzel (PSB), temos a criação de duas secretarias distintas e independentes, a Secretaria de Polícia Militar e a Secretaria de Polícia Civil, que são subordinadas por si mesmas e contam com orçamento público próprio, decisões políticas autônomas e teoricamente prestam contas exclusivamente ao Chefe do Executivo.

Com todo esse cenário de autonomia e força política, as polícias incidiram recentemente para o MPRJ extinguir o Gaesp – Grupo de Controle externo das polícias. E, foram vitoriosas. Um outro exemplo do resultado de polícias completamente autônomas na tomada de decisão foi a execução da Chacina do Jacarezinho, que foi decidida pelo Secretário da Polícia Civil com o completo aval do atual governador Cláudio Castro (PSC), sem que qualquer instância interna ou externa as polícias pudessem exercer algum tipo de controle para reduzir o uso da força e letalidade.

Esta autonomia e independência das decisões da polícia demonstra também uma total afronta ao Supremo Tribunal Federal que emitiu uma liminar proibindo operações policiais durante o período de pandemia de Covid-19 no Rio de Janeiro, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. A megaoperação policial no Jacarezinho contou com 2 helicópteros, 4 veículos blindados e 250 policiais recebeu o nome de Operação “Exceptis”, uma postura de pura ironia e desrespeito a liminar de suspensão das operações policiais. Uma operação policial que resultou na operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, ou seja, uma chacina realizada pelo Estado.

Agora, cabe indagar o que fazer com todo esse poderio e independência das Polícias. Gostaríamos de compartilhar alguns caminhos:

De imediato, continuar fortalecendo a ADPF 635: ADPF das Favelas, que está diretamente incomodando o Governador Cláudio Castro (PSC)  e as duas Secretarias de Polícias do Rio de Janeiro, já que incide no controle da atuação das polícias.

Precisamos aproveitar da disputa interna do Estado, entre judiciário e executivo para pleitear algum tipo de controle externo das polícias. Haja vista, que durante os 3 primeiros meses da liminar de suspensão das operações policiais expedida pelo STF, a letalidade policial caiu vertiginosamente e preservamos vidas nas favelas, periferias e subúrbios que não foram submetidos aos confrontos armados nas ruas.

Nas diretrizes orçamentárias do próximo ano já está indicada a realização de 2.782 operações policiais comandadas pela Polícia Civil, são aproximadamente 7 operações policiais por dia!

No caso da Chacina do Jacarezinho, a partir das denúncias, o Ministério Público do Rio de Janeiro – MPRJ, a partir de seu Procurador Geral pronunciou-se afirmando que a Polícia Civil não descumpriu com a liminar de suspensão das operações policiais do STF.

Fica evidente a conivência do sistema de justiça com o assassinato sistemático de corpos negros nas favelas e periferias, a instituição que deveria controlar e sancionar as ações trucurlentas, assassina e bárbaras das polícias está exercendo um papel de proteção aos abusos policiais e ignorando a determinação do STF.

Foram inúmeras as violações de direitos humanos promovidas por essa megaoperação policial no Jacarezinho, o próprio o Ministro do STF, Edson Fachin se pronunciou cobrando uma perícia independente sem a participação da Polícia Civil, que atuou de forma assassina, violadora e vilipendiosa durante quase 6 horas de operação. 

No curto prazo, também precisamos denunciar ao mundo, principalmente as organizações de direitos humanos internacionais, o completo absurdo de não controle das polícias e toda sua barbárie. 

A médio prazo, podemos pensar na estratégia do desinvestimento das polícias. O Estado gasta mais com a promoção de uma política genocida e de encarceramento em massa através de ferramentas da militarização e suas consequências do que com a garantia da vida. Precisamos repensar o modelo atual de segurança pública, que utiliza 13,6% do total do orçamento público, equivalente a 11 bilhões de reais.

Atualmente a Polícia Militar e Civil compõem secretarias autônomas e com orçamento independente, incluindo fundos especialmente criados para financiar seus custos. Em um ano de crise sanitária, política e financeira, em que o Estado continua sob um Regime de Responsabilidade Fiscal, observamos a expansão de gastos com segurança pública. 

Nas diretrizes orçamentárias do próximo ano já está indicada a realização de 2.782 operações policiais comandadas pela Polícia Civil, são aproximadamente 7 operações policiais por dia! Além da compra de 1 milhão e 800 mil unidades de munição para atuação das polícias militar e civil, são cerca de 5 mil balas por dia somente para o braço armado do Estado. Como se não bastasse uma quantidade absurda de munição, também foi adicionado a compra de  250 mil unidades de material bélico. Em que não é informado o tipo de material bélico, pode ser desde granadas, pistolas, metralhadoras ou até spray de pimenta. Ademais, ressaltamos que já ocorreu a compra em março de 2021 de 15 veículos blindados – que custam cerca de 652 mil/cada, com um custo total de 10 milhões. Logo, qual a necessidade da compra de mais 6 novos veículos blindados para as corporações?

Ademais, está como prioridade no orçamento público a operacionalização da coleta de material genético de pessoas em situação de privação de liberdade. O material armazenado, será usado para comparação do DNA colhido em locais de crimes com os de suspeitos cadastrados no banco, um programa que reforça o racismo estrutural fundante desta sociedade.  Uma completa arbitrariedade.

Logo, o nosso horizonte de projeto político a longo prazo só pode ser um: o da Abolição das Polícias. Não existe a possibilidade de controlar, efetuar treinamento humanizado ou impedir a letalidade policial, haja vista, que trata-se de uma instituição fundada para controlar corpos e assassinar pessoas.

A urgência do fim da letalidade policial perpassa o fim da instituição da polícia, que precisa estar no seio das lutas anticapitalistas, antirracistas e antipatriarcais. Não podemos entrar na conversa da reforma da polícia, trata-se da mesma questão e tentativas de humanizar o capital, ou seja, isso não existe. Não há a menor possibilidade. Além da importância de materializar esse projeto político da abolição da polícia neste momento, não podemos perder de vista que já existem experiências autônomas revolucionárias em desenvolvimento neste sentido – experiências alternativas e para além dos limites do Estado burguês.

No processo de construção deste texto, soubemos que o Deputado Estadual Alexandre Freitas (Novo) protocolou o Projeto de Lei n°4163/2021 garantindo as Instituições Policiais do Estado do Rio de Janeiro, ao realizarem operações policiais, não precisam informar, prévia ou posteriormente, sua realização a nenhum outro órgão, instituição ou Poder.  

A aprovação de um projeto de lei neste formato apenas reforça a independência e desresponsabilização das polícias e reforça que a função social da polícia é ser o braço armado e repressivo do Estado que atua para a manutenção da ordem burguesa e a proteção do caráter inviolável da propriedade privada.

E, como toda situação pode piorar, também ficamos surpresos com mais uma ação nociva e autoritária do Estado, em que a Polícia Civil estabelece sigilo de 5 anos sobre informações de todas as operações do RJ após decisão do STF, inclusive os nomes dos dos policiais envolvidos na Chacina do Jacarezinho. 

Por isso, a reflexão sobre o papel do Estado e seus instrumentos de repressão e controle são tão valiosos para pensar de forma estratégica quem são nossos inimigos na luta, porém é imprescindível saber quem são nossos aliados. Para não cometer erros históricos e não mais acreditar que é possível fazer a disputa interna ou a própria reforma do Estado e da polícia. 

Seguimos construindo a luta pelo fim das polícias. 


 1A ADPF 635 que foi ajuizada em novembro de 2019 no Supremo Tribunal Federal, questiona a política de segurança pública genocida realizada pelo Estado do Rio de Janeiro. A ADPF 635 propõe que o Estado do Rio de Janeiro elabore e encaminhe ao STF, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, um plano visando à redução da letalidade policial e ao controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança fluminenses, que contenha medidas objetivas, cronogramas específicos e previsão dos recursos necessários para a sua implementação. Para mais informações, acesse:  https://dmjracial.com/2020/04/21/nota-de-apoio-a-adpf-635/

2Para saber mais sobre orçamento público da segurança pública, acesse do Dossiê De Olho na Alerj: Uma incidência política na Segurança Pública.

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