
Por Fransérgio Goulart
Recentemente o Supremo Tribunal Federal – STF, suspendeu as operações policiais no contexto do Covid-19 a partir de uma medida liminar colocada por Movimentos e Organizações sociais, entre essas a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial. Essa medida liminar define que as operações policiais só poderão acontecer em caso de “excepcionalidade.”

A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial já sabia que o Estado Genocida iria rapidamente criar subterfúgios e não apresentar uma definição conceitual do que pode ser considerado uma “excepcionalidade” para realizar confronto armados em ruas e vielas das favelas e periferias durante uma pandemia mundial.
A partir do monitoramento de redes sociais, mídias digitais e de jornais percebemos que polícia tenta imputar uma narrativa específica sobre a urgência da excepcionalidade para realizar operações policiais da polícia: a retirada de barricadas.
A barricada é um obstáculo defensivo criado colocando-se objetos entre si e o perigo. É uma espécie de trincheira improvisada. Pode ser feita com barricas, estacas ou qualquer outro material que ofereça proteção.
Diante disso vale, colocar algumas questões: os condomínios da classe média e alta têm bases e barreiras na sua entrada – em alguns casos fechando vias públicas, nos territórios dominados pelas milícias há contenções e portões para registro de entrada e saída de pessoas. E nas favelas, paus, manilhas e barras de ferro são contenções.
Quais dessas realidades urbanas são criminalizadas?
Por que justamente nas favelas essas barricadas precisam ser retiradas com urgência e tratadas como uma situação são excepcional de segurança pública, por conseguinte, geram justificativas para realização de operações policiais durante uma fase de alto contágio de Covid-19?
Ao nosso ver, trata-se da construção do inimigo baseado na literatura jurídica. Em que os conceitos de legalidade e ilegalidade apenas fortalecem a lógica da produção da morte, principalmente para territórios favelados e periféricos, ou seja, territórios predominantemente negro.
Iremos desenvolver melhor essa afirmação, a partir da teoria do direito do inimigo. Antes, precisamos demarcar que desde a invasão dos portugueses, determinados grupos populacionais, organizações e movimentos são construídos como inimigos no Brasil, dos indígenas, passando pelos negros, aos movimentos de favelas e do campo na contemporaneidade.
Em nossa avaliação a teoria do direito do inimigo é uma das ferramentas mais usadas para essa construção e para produção da morte no Brasil. O Direito Penal do Inimigo foi criado em meados dos anos 80 pelo alemão Gunter Jackobs, como uma resposta à crescente onda de criminalidade que se observava no panorama mundial da época. Para nós, trata-se somente de uma teoria racista e xenofóbica.
“Afinal, a única saída para pôr fim a esse sistema de moer vidas é a construção de uma via emancipatória e decretar o fim do capitalismo, do racismo e do patriarcado.”
Fransérgio Goulart
Em termos gerais, a referida teoria defende a aplicação de normas mais severas, bem como de restrições ou mesmo a eliminação das garantias fundamentais para aqueles que são considerados inimigo. Entendendo o inimigo como um subversivo da norma penal, ou seja, da dita legalidade e age em total descompasso com as expectativas da sociedade e da norma e por isso deve ser tratado de forma excepcional, não sendo considerado um cidadão. Logo, sendo tratado somente como um inimigo. A partir deste o fundamento que se justifica a aplicação de um direito penal excepcional, que não observa as garantias fundamentais.
Para Gunter Jackobs, coexistem dois ordenamentos jurídicos dentro de um mesmo sistema legal: um que se aplica ao cidadão e outro que se aplica ao inimigo, ou seja, o estado capitalista estruturado no racismo diz o que é legal e ilegal, quem é cidadão e quem não é.
Dado que o Estado nesta sociedade capitalista possui o monopólio da razão e que atua de acordo com os interesses da fração de classe dominante no bloco de poder. Portanto, o Estado representa a vontade e a manutenção dos privilégios desta fração de classe.
Dito isso, voltamos ao contexto da excepcionalidade para realização das operações policiais, as tais barricadas. Já comprovamos que existem barricadas em territórios da fração de classe onde habitam a classe média e alta, a diferença que esses não são inimigos e as barricadas são legais, também mostramos que em territórios dominados por milícias não existe o argumento de retirada de barricadas como uma excepcionalidade, pois esses também fazem parte do Estado e atualmente estão no controle da máquina pública, seja no Executivo, Judiciário ou no Legislativo.
Nesse momento de disputa e acirramento sobre a liminar da suspensão das favelas e das medidas cautelares da ADPF 635 vs. a construção do discurso da necessidade de realizar operações policiais excepcionais para a manutenção da política da morte, entender sobre o direito penal do inimigo e sua consequência para nossa luta é central. Pois, as principais características do direito penal do inimigos são os dispositivos e instrumentos constitucionais usados para dar continuidade ao genocídio e ao encarceramento em massa do povo negro. Logo, as tentativas de atacar a suspensão das operações policiais e medidas cautelares resultadas da ADPF 535 é uma ofensiva ao direito à vida da população.
São as características do direito penal do inimigo, como a antecipação da punibilidade com a tipificação de atos preparatórios, criação de tipos de mera conduta, previsão de crimes de perigo abstrato, flexibilização do princípio da legalidade, inobservância do princípio da ofensividade e da exteriorização do fato, preponderância do Direito Penal do autor, desproporcionalidade das penas, endurecimento da execução penal e restrição das garantias penais e processuais são uma das principais ferramentas atuais da necropolítica.
Por fim, vale ressaltar que o comércio de drogas e armas é um dos negócios mais lucrativos do capitalismo. O próprio Estado fomenta a produção, a comercialização, a repressão e principalmente a definição de legalidade/ilegalidade, logo: a construção do inimigo. Como já afirmamos anteriormente não existe crime sem o Estado, pois ele é o ator protagonista nessa construção da manutenção da acumulação do capital e por consequência da produção da morte.
Afinal,a única saída para pôr fim a esse sistema de moer vidas é a construção de uma via emancipatória e decretar o fim do capitalismo, do racismo e do patriarcado. E finalmente construirmos outras formas de sociabilidades não mais baseadas na mercantilização da vida. Pautada pela ampla, total e irrestrita liberdade e de lógicas não punitivistas.
Não desejamos barricadas, cidades com muros ou condomínios com grades em nenhum território do mundo.