
Por Monique Rodrigues
Existe alguma forma de nomear uma mãe que teve seu filho, que é sua descendência, seu legado, retirado violentamente da sua existência, pela violência que estrutura o Estado genocida no Brasil? Qual o senso de justiça que pode tornar menos pesada a dor de familiares e amigos vitimados pelo Estado?
A barbárie normatizada pela violência de Estado, tem na ação de extermínio da vida nas periferias, subúrbios e favelas, sua forma mais cruel de manutenção do sofrimento, do controle e de todo senso de injustiça que o Estado destina às populações que vivem nesses territórios. Promovida pela polícia e legitimada por uma parcela da sociedade brasileira, o genocídio atravessa o cotidiano de pessoas e tem colocado famílias em situação de extremo desamparo, desespero e desesperança.

Os assassinatos de jovens negros destroem toda a comunidade que vive em torno dessa vítima, e traz a reflexão sobre qual é a maneira de ser construir ação de resistência e enfrentamento diante à estrutura sociorracial que define quem pode morrer e quais são os territórios liberados para a barbárie.
Nessa entrevista conversamos com a mãe, o irmão, a irmã e uma amiga do jovem Vítor Oliveira. Morador da Baixada Fluminense, homem preto e jovem, assassinado por agentes da Polícia Militar em 17 de Junho de 2018. São dois anos de ausência do Vítor na história da sua família e amigos.
Elisabete Oliveira é hoje uma mãe que faz parte do cenário de mulheres que lutam constantemente pela memória do seu filho. Vítor Oliveira, seu segundo filho, tinha 18 anos e ganhou esse nome porque, como conta Elisabete: “Eu tive diabetes na gravidez e precisei tirar ele com 6 meses de gestação com 1 kg e 400 gramas e ficou na incubadora até completar 2kg. Achei que ele foi vitorioso por isso coloquei o nome dele de Vitor”. Vivo na memória de seus familiares e amigos, Vítor teve sua vida interrompida violentamente em trágica tarde de domingo.
“Sou mãe de Vitor Oliveira um filho bom amoroso, carinhoso e sempre alegre que nos deixou com muita saudade. Ele gostava muito de aprender, fazer cursos. Muito tranquilo, com 16 anos ele terminou o segundo grau. Ele ia começar tirar a carteira de habilitação para trabalhar com o pai dele. Ele dirigia tudo, carro, moto, já ia começar as aulas dia 21 de junho morreu no dia 17. Fez o curso de barbeiro na Embelleze terminou e nem pegou seu diploma eu que peguei. Filho muito bom, obediente em 2019 ele ia começar sua faculdade de administração, sua irmã já estava terminando ele ia começar por isso comprou a moto. Esse estado assassino acabou com todos os sonhos dele.” Elisabete Oliveira

Para o irmão a dor da impunidade é um peso tão grande tanto quanto a morte injusta de Vítor.
“O que falar do Vítor? O Vitinho era um moleque prestativo, um menino exemplar, de casa com meus pais, comigo, nunca respondeu, estava sempre disposta a ajudar qualquer um, tinha grandes sonhos de ingressar na área militar, mas infelizmente essas pessoas que tiraram a vida do meu irmão estão impune, mas Deus vai dar uma posição aí. Eu espero que Deus faça justiça. Menino trabalhador, responsável, um irmão que a gente ama muito, fica a saudade. Meus piores dias são os domingos, o dia que aconteceu essa fatalidade…”
A trajetória de vida desses jovens são muito parecidas, na sua maioria, nascidos e criados dentro dos bairros, conhecidos e queridos pela vizinhança, solidários com familiares e amigos, participante ativos da vida social do território. Seja por meio das festinhas que eles mesmos organizam ou das ações comunitárias dentro das igrejas, a presença se faz intensa e importante para o coletivo que estão inseridos.
Jaqueline Oliveira, irmã do Vítor conta essa característica do irmão:
“Sou Jaqueline Oliveira irmão do Vítor Oliveira, que foi morto no dia 17 de junho de 2018, por dois policiais militares do vigésimo primeiro batalhão de São João de Meriti. Meu irmão morreu no dia que meu filho completava 1 mês de vida, e depois que o Vítor morreu, basicamente minha vida acabou, porque eu não sei viver sem meu irmão. O Vítor era tudo pra mim, era metade de mim, eu fazia tudo com ele, e era eu e ele sempre.
O Vítor era aquela pessoa meiga, prestativa, era companheiro. Se você precisasse de 1 quilo de arroz, ele te dava um quilo de arroz e de feijão, ele tirava a camisa o corpo pra dar pra você, eu lembro que às vezes ele não tinha dinheiro e tinha ação social na igreja pra vender quentinha e arrecadar dinheiro para pagar o aluguel da igreja, que ele fazia parte do Ministério Rompendo em Fé, e às vezes ele não tinha dinheiro e procurava alguma coisa pra fazer, ele lavava uma moto, por dez reais pra comprar um quilo de arroz pra doar pra igreja. Dia de domingo que era o dia de descanso ele ia pra igreja pra ajudar a limpar, arrumar, fazer um frete, fazer alguma coisa. Ele era uma pessoa muito ativa, muito prestativo, muito amigo.”
A memória é a bandeira que Elisabete carrega para lutar pela justiça, assim como as mães que fazem essa luta cotidianamente, e que encontra uma nas outras uma rede de acolhimento e força.
“A luta na verdade para que esses policiais sejam punidos para que isso pare, desde que o Vitor morreu eu vejo que isso tudo continua, todos os dias estamos vendo que eles matam, erram e a justiça é tão lenta que não ver quantas famílias estão destruídas, não só a minha. Aa mãe do Vitor Hugo, do João Pedro de são Gonçalo, da Aghata e muitas outras famílias. Espero que realmente esses governantes vejam o que os policiais estão fazendo com a nossa juventude. Eu só quero justiça pela vida que foi tirada do Vitor.” Elisabete Oliveira.

O relato sobre o assassinato do Vítor é muito similar aos de várias mães que enfrentam essa tragédia, o que comprova que essa é uma metodologia de morte destinada à esses jovens.
No dia 17 de junho de 2018 era dia do primeiro jogo do Brasil ele passou o dia todo no seu lava jato, que ele fez na garagem de casa. Começou o jogo chamei ele para ver ele me disse: “não mãe preciso terminar esses carros.” Então terminando o dia ele me disse: “mãe não acostuma não porque hoje vou pagar seu lanche” e comprou bolinho de aipim, lanchamos e ele saiu ali por perto mesmo estava em uma resenha com amigos. Foi tudo muito rápido, questão de uns vinte minutos depois dele sair de casa veio uma amiga dele correndo e disse tia corre que a polícia matou teu filho não acreditei. Corri quando cheguei lá eles já tinham levado ele.
Fui para o hospital onde fiquei sabendo que era tudo verdade reconheci o corpo e fui pra delegacia pra saber o que de fato tinha acontecido. Na DHBF fiquei sabendo que o meu filho Vitor Oliveira estava com seu amigo Vitor Hugo, que estava pilotando quando a polícia deu ordem de para ele, que não parou, acredito que por medo de não ter carteira fugiu sentido a casa de Vitor Hugo. Próximo a casa do Vitor Hugo no quebra mola o carro da polícia bateu na moto meu filho que era o carona caiu ele disse que ele tinha uma arma e atirou uma vez só.
Matou os dois meninos. Após o enterro voltei ao local do crime pra ouvir dos vizinhos o que de fato tinha acontecido, porque foi um dia de jogo do Brasil e lá descobrir que o Vitor Oliveira caiu levantou a blusa e falou sou morador sou trabalhador e mesmo assim ele atirou.
Os moradores se revoltaram eles tiveram que pedir apoio. Eles podiam ter feito a abordagem e não houve pareciam alucinados o vídeo que consegui vê o tamanho da revolta dos moradores.
Os moradores dizem que deram de três a quatros tiros, no depoimento deles somente um tiro de pistola 40 matou os dois. Como se morreu um em cada lado da rua com uma distância bem grande? Muitas coisas não bate nos depoimento deles com os dos moradores que estavam nas barracas próxima do acontecido.”
“A memória é a bandeira que Elisabete carrega para lutar pela justiça, assim como as mães que fazem essa luta cotidianamente, e que encontra uma nas outras uma rede de acolhimento e força.”
Monique Rodrigues
Na periferia, nas favelas, nos bairros onde as pessoas se conhecem, as relações afetivas são definidas pelo convívio, é muito comum que os amigos dos filhos sejam tratados como filhos. Na família do Vítor não é diferente. As lembranças do amigo que ele foi atravessa a jovem Luana, que detalha e relembra o que a violência policial lhe tirou.
“Quando eu conheci o Vítor ele estava completando 16 anos foi no aniversário dele. Ele era diferente de todos os meninos da idade dele, não era de arrumar briga, era um garoto na dele, sorridente. Ele sempre estava ali. Ele tinha muitos amigos também, era carinhoso demais. Eu era considerada uma das melhores amigas dele, como ele também era meu melhor amigo. Eu e Vítor passamos muitos momentos juntos, e às vezes eu páro pra pensar e fico chorando. A morte dele foi uma morte que ninguém esperava. Nunca fez nada de errado. O Vítor não bebia, não usava drogas, e ele sempre estava ali pra me dá conselhos quando eu precisava. Eu morava com minha mãe, e do nada ele chegava lá de moto,, toda hora, em um dia ele ia lá em casa duas, três vezes de moto, buzinava e eu ficava lá com ele no portão. Minha família era apaixonada por ele, eles juravam que a gente ia namorar, mas não tinha como a gente namorar porque nós éramos muito amigos. E eu era amiga da namorada dele. Mas o Vítor era uma pessoa que todo mundo gostava, onde ele chegava transmitia alegria para as pessoas, transmitia carinho, sei lá, é estranho falar assim. Ele sempre me chamava de Luaninha, meu apelido pra ele, podia estar bolada com ele, que ele me chamava de Luaninha. E o apelido dele pra mim era Vitinho. Meu Vitinho. Depois que o Vítor morreu parece que as coisas desabaram, porque toda vez que eu precisava o Vítor estava ali. Eu chorava ele tava ali, eu mandava mensagem pedindo alguma coisa ele ia. Eu falava: Vítor traz Fini pra mim, ele vinha cheio de Fini, mas às vezes ele ia sem nada e eu ficava bolada, mas depois ele levava pra mim. Depois que ele morreu foi difícil porque a gente saber que o garoto morreu sem fazer nada, inocente, é complicado demais. Quando eu fiquei sabendo da morte do Vítor eu desabei, mas também eu não acreditei que ele tinha morrido, porque o vítor não tinha motivo pra morrer. Não tinha. Ele não podia morrer. A gente vive todos os dias tentando lidar com a dor de não ter o Vítor mais aqui. Eu vejo o sofrimento da família dele. A família querendo justiça e tem que ter justiça sim, porque o Vítor não poderia ter morrido. Nós precisamos de justiça, talvez a justiça vá consolar mais a gente. Fui feliz enquanto eu fui amiga dele e até hoje sou amiga dele. Eu tô aqui firme. Eu sempre páro no tempo, converso com ele, começo a pensar e tudo o que a gente passou, e às vezes eu sinto que ele está do meu lado. Todas as vezes que eu estou triste e páro pra pensar nele eu sinto que ele está ali. No aniversário dele, no domingo, eu falei que não ia sair de casa, queria ficar sozinha. Eu comecei a conversar com ele, falar sozinha eu sentia que ele estava ali me respondendo, me dando um abraço e mandando eu ser forte. Eu preciso ser forte e a família dele também, porque dói de verdade. Muita gente pode achar que não dói, que já passou dois anos mas dói assim como doeu no primeiro dia.”
Vítor Oliveira não é só um nome ou um número da estatística da violência de Estado, que mata jovens negros, pobre, periféricos, favelados, o Vítor, o Vitinho é filho, irmão, amigo, companheiro que foi assassinado por uma polícia covarde e racista. Sua história e seus sonhos foram interrompidos entretanto sua família e amigos seguem ecoando sua existência. Elisabete é hoje a guardiã da memória e o significado da busca por justiça.
A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial reafirma a importância das mães na ação de defesa da memória contra o apagamento, a impunidade e pela efetiva justiça.