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Por: Monique Rodrigues


Resistir diante às opressões e violências que as estruturas sociais organizam como relações cotidianas nos territórios periféricos é uma ação que só tem sentido quando refletimos coletivamente. O último sábado, dia 09.10.2021, foi um dia para construir mais uma possibilidade de reflexão – ação sobre esses enfrentamentos. A IDMJR lançou o memorial Baixada Resiste, na Via Light em Nova Iguaçu, ilustrando a luta combativa de personalidades que resistem cotidianamente em diversos campos de atuação contra a violência de Estado, sobretudo as que são imputadas à população negra e pobre.

Na resistência da Baixada Fluminense a diversidade de ações marca uma característica muito específica desses territórios: a resistência está sendo constantemente construída de várias formas. Os homenageados e as homenageadas neste memorial formam um panorama sobre as condições sempre controversas de uma população que foi definida como não cidadãos. Na religiosidade de matriz africana, na educação pública, na cultura de periferia e na constante violência naturalizada, a população da Baixada segue reivindicando o não apagamento dessas narrativas produzidas dentro dos territórios.

Silvana Azevedo, conhecida como Nem, é a irmã do Renato que é uma das vítimas da chacina da Baixada, ocorrida em 2005, e foi nossa homenageada pela luta contra a violência policial que assola vidas diariamente. 

“Eu me sinto muito agradecida e feliz pelo reconhecimento da minha luta. São 16 anos de uma luta diária, a necessidade de justiça é real, são tantos casos na Baixada que a maior parte não vai ter justiça, sobretudo os desaparecimentos forçados, que ultimamente eu tenho vivido muito de perto.”

Escutar o relato de enfrentamento à violência policial, que na maior parte dos casos  se desdobra na ausência de justiça e em um completo sentimento de impunidade, têm feito mães e familiares caminhar de forma independente diante desses casos. Na estrutura, que a Iniciativa tanto critica, a educação é um dos pilares que fomenta o não pertencimento histórico que serve para anular as identidades, por isso escolhemos homenagear também, o professor Luiz Bruno, historiador, professor e ativista do movimento negro na Baixada, que trouxe um debate importante em torno da mobilização entre gerações.

“Ser homenageado em vida é muito legal porque a gente se vê. Os amigos, conhecidos podem te ver e se reconhecer também, além disso, a homenagem reflete além da luta histórica um estímulo aos novos que venham para a luta. Esse para mim é o principal símbolo, ficar nas paredes da cidade como representação das pessoas da cidade, e para um conjunto de lutas. Quando a gente olha esse tipo de homenagem, não pode pensar individualmente, isso carrega também outros companheiros, como o Jorge Damião, que me levou para o movimento negro em um bate papo muito simples, um cara que eu tenho maior respeito e admiração pela sua simplicidade e luta aqui em Nova Iguaçu. O movimento negro é onde eu me encontrei e sou feliz por estar, mais ou menos 33 anos de luta, e hoje eu recebo essa homenagem de uma forma muito feliz.”

O sentido através do tempo das lutas é muito bem representado pelas lideranças religiosas de matriz africana, que apresentam a ideia de tempo ancestral e sempre voltado para a necessidade de manutenção de bases sólidas para o povo de terreiro, sobretudo por identificar a constante ameaça que essas sociabilidades sofrem diante o racismo religioso, a intolerância religiosa, as opressões que as populações LGBTQIA+ sofrem por pertecem ao Candomblé, uma vez que a cultura do terreiro historicamente acolhe essa população. 

A Iyalorixá Soraya d’Odé, Mãe de Santo do Ilé Àse Omode Tìtán situado em Nova Iguaçu, foi homenageada e trouxe a fala sobre a constância da luta dos povos de matriz africana, através de gerações, e a urgente necessidade de reconhecimento da contribuição do terreiro na manutenção da vida em coletivo.

Para mim essa homenagem é uma honra, ela vem ratificar um trabalho que não começou por mim, começou lá atrás com os nossos ancestrais, e hoje vê meu rosto estampado no muro em um memorial que quer redefinir, cada homenageado aqui como um símbolo a ser seguido, eu não tenho nem palavras pra dizer, expressar a tamanha honra que eu sinto. A minha mãe (Mãe Bárbara de Obaluaiê – in memorian) que foi Iyalorixá nunca teve o rosto dela estampado em nenhum lugar. A minha vó que foi iniciada em Candomblé também não teve, e hoje uma Iyalorixá tão nova. está aqui ao lado de pessoas que estão nessa luta há tantos anos, como Mãe Meninazinha, que é um exemplo, minha Abá1. Eu só tenho a agradecer aos nossos ancestres, que eles mesmos protejam todos que aqui estão estampados e todos que passarem e verem o rosto da gente estampados como marca significativa de uma luta, de uma resistência pra levar esse tema do Candomblé para tantas outras pessoas que virão.”

A Baixada Fluminense é terra de terreiros, historicamente aqui se desenvolveu os espaços sagrados de culto aos Orixás, mais famosos dentro do Estado do Rio de Janeiro. Mães e Pais de Santo, escolheram a Baixada por inúmeros motivos. Mãe Meninazinha de Oxum, à frente do Ilé Omolu Oxum, também faz parte desta homenagem. Situado em São João de Meriti, a Casa é uma referência no debate de direitos humanos e assistência social para a população do entorno. A Iyá Egbé2 da Casa Nilce de Iansã, foi representando a Mãe Meninazinha e o Terreiro Omolu Oxum, onde também funciona o Museu com acervos da cultura de Candomblé que percorre a história dessa família.

“É uma luta árdua mas que a gente não desiste. Mãe Meninazinha uma mulher com 84 anos vêm nessa luta pelos direitos humanos, uma luta antirracista, contra o racismo religioso, ao longo desses anos, construindo ações sociais dentro do seu terreiro, e tirando aquele imaginário negativo  que o povo tem sobre nós de tradições de matriz africana.  Nós reinauguramos o Museu Memorial Iyá Davina3, que está aberto ao público, preservando e divulgando a nossa tradição, cultura e religiosidade ancestral.”

A temática dos Direitos Humanos é um caminho divergente nesses territórios, uma vez que essas populações não são vistas como cidadãos com direitos e acesso igualitário diante o Estado. O serviço de transporte público, o atendimento nos postos de saúde, a espera na vaga da creche, as praças públicas que deveriam ser espaço de lazer mas que servem como depósito de lixo, mostram uma condição que o homenageado Aércio Barbosa de Oliveira, mobilizador cultural e ativista dos direitos humanos, relatou muito bem:

“Eu cheguei na Baixada entre 1977 e 1978, e sempre foi um território muito marcado pela violência. Tem coisas muito positivas, interessantes, mas o histórico da Baixada, e como é mostrado, é justamente por uma violência que acontece no cotidiano das pessoas. Durante muito tempo essa violência foi naturalizada e vista como normal ter matador, e quando aparece uma organização que racializa o debate, ajuda a mobilizar, usa uma metodologia como o memorial que me parece inédita. Normalmente estão nos memoriais a elite política, são comendas que as câmaras municipais dão e ter esse tipo de iniciativa, de criar um memorial para pessoas vivas, que estão no combate, na luta dos direitos humanos na Baixada Fluminense, eu acho de grande relevância. Inclusive para ajudar a formar uma cultura de direitos na Baixada Fluminense.”

Homenagear em vida os agentes de mobilização e transformação das realidades de desigualdade na Baixada foi uma reflexão que pairou no lançamento do memorial Baixada Resiste. A cultura do reconhecimento é muito importante pois ela infla o ânimo para continuar luta ao mesmo tempo em que possibilita o fortalecimento de redes de atuação e sobretudo, constrói uma valorização sobre as conquistas alcançadas.

Janaína Oliveira, uma cineasta reconhecida por filmes importantes, dentre eles: “Joãosinho da Goméa: o rei do Candomblé” e “Nossos Corpos são Nossos Livros”, sendo este último uma produção desta Iniciativa, retrata questões muito importantes sobre a Baixada e seus personagens reais.

“Ter um memorial é mostrar a nossa resistência e a existência aqui na Baixada. Para mim é uma honra fazer parte, eu nunca pensei que isso fosse acontecer, porque a gente vê quantas pessoas partiram então ter essa homenagem em vida é muito feliz para mim. Eu já cansei de fazer evento de hip hop aqui nessa praça, aqui na via light, na Baixada. Isso é importante porque a gente trabalha com a memória. Trabalhar com a memória nesse momento que a gente vive o virtual e o líquido, aquela coisa dos stories, a gente vive só as 24 horas e acabou, isso é muito importante. Parabéns a Iniciativa por esse trabalho, não só dos memoriais mas tudo em relação à memória, eu tô muito feliz, impactada e honrada. É muito importante um trabalho como esse.”

Foram homenageados também, Otair Fernandes professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, um dos maiores fomentadores e lutadores da política de cotas raciais, pelo acesso e permanência da população negra nas universidades. Otair é também pesquisador das temáticas raciais e estudioso do samba carioca, e Dudu de Morro Agudo, rapper, ativista cultural e coordenador do Enraizados, que promove um trabalho fundamental na inserção de jovens da Baixada Fluminense no campo das artes que estão na linguagem do hip-hop. Duas personalidades que dialogam com a educação como resistência e produção de identidade na Baixada.

  O memorial Baixada Resiste vem para celebrar a vida e a luta de cada uma dessas pessoas, mostrando que as homenagens coletivas precisam ser feitas e louvadas, pensando na importância de cada um na ação conjunta. Nossa defesa é para que as ações do presente construam um futuro menos racista, menos segregador, menos violento e sobretudo com liberdade para cada pessoa exercer suas liberdades. Nossos homenageados e homenageadas estão nessa história como agentes cumpridores desse papel. A Baixada Resiste.

Nosso agradecimento aos grafiteiros, sempre parceiros, Rodrigo Mais Alto e Kleber Black.


 1Abá no Candomblé significa pessoa mais velha.

2Título que corresponde à conselheira responsável pelas ações sociais do terreiro.

 3O Museu funciona diante agendamento prévio, disponível informações no site https://ileomolueoxum.org/

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