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Por Giselle Florentino


Neste 13 de maio que marca os 133 anos de Abolição Inconclusa no Brasil, a IDMJR realizou uma longa entrevista com uma das mais importantes organizações políticas autônomas do povo negro: Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto. Que neste ano comemorou 16 anos de existência, resistência e inspiração de luta e esperança na construção de um outro mundo.

Confira na íntegra a nossa conversa!

Confira na íntegra a nossa conversa!

IDMJR: Gostaríamos que pudesse compartilhar conosco o que é a Reaja e quais ações estão realizando atualmente? Principalmente que pensam enquanto projeto político para o povo negro.

Reaja: A Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto é uma organização política que faz o enfretamento ao genocídio do povo negro. Nasceu em 2005 como um Campanha para combater,  principalmente a morte de jovens negros, depois de abordagens policiais, especialmente da Polícia Militar do Estado da Bahia, cujas mortes eram classificadas como resistência seguida de morte.

Desde então, veio se configurando de acordo com a realidade entendendo que se trata de um processo em curso, do genocídio do povo negro e que tem como elemento central o ódio racial anti-negro que leva ao quadro de exclusão, pauperização, violência racial e morte que nós, povo negro, enfrentamos. A partir desta compreensão, começamos a nos organizar para fazer este enfrentamento, reconhecendo a autonomia como primordial para o nosso processo de libertação preta, de recondução de nossas vidas e da reontologização de nossa história africana em Salvador, na Bahia, no Brasil e no mundo.

Desde 2005, fazemos o enfrentamento nas ruas, com Marchas nacionais, internacionais e transnacionais contra o genocídio do povo negro. Em 2015, depois da Chacina do Cabula, onde a Policia Militar do Estado da Bahia executou 12 jovens e violentou a comunidade onde eles moravam, reunimos uma série de informações e casos de violência policial, desaparecimentos forçados após abordagens policiais, a privação e negação de direitos das pessoas privadas de liberdade e seus familiares e amigos por parte do governo do estado da Bahia, entre outras situações concretas de violação dos direitos de humanidade das pessoas negras, denunciamos o genocídio do povo negro no estado da Bahia e  no Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)  da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Como caminho para nossa reorganização e diante da negação de direitos por parte do estado brasileiro (representado por prefeitos, governadores e presidentes, sobretudo através de suas forças policiais) trabalhamos para o enfrentamento a este ódio racial anti-negro nos organizando de várias formas.

Além das denúncias já realizadas e exigências por nossas vidas, em 2016 criamos a Escola  Comunitária Quilombista Panafricanista Winnie Mandela, um centro de formação para crianças e suas famílias que moram na nossa comunidade que tem como foco principal oferecer uma alternativa de formação com princípios e cosmovisão do ponto de vista de pessoas pretas, disponibilizando, além de reforço escolar nas principais disciplinas, cuidados e formação que vão desde aula sobre a história da África, HIP HOP, Boxe, inglês, curso de fotografia e cinema, além de atividades culturais, entre outras atividades permanentes que nos promovam na nossa capacidade criativa, produtiva e de viver uma vida plena, com princípios que nos pertencem e nos trouxeram até aqui. Não a toa, a escola leva o nome desta mulher sul-africana que representa um farol na luta nas ruas com o regime de segregação racial na Africa do Sul e no mundo. Nos inspiramos nela para seguir com a força que ela demonstrou no enfrentamento ao ódio racial juntamente com seu povo.

Desde 2016 temos uma editora, a Editora Reaja, que nos permitiu produzir livros e estimular diversos autores e autoras negras a também produzirem seus livros. Neste ano, desde fevereiro, temos também uma livraria, a livraria Eleyè (@livrariaeleyè) que está localizada dentro de um bairro negro, na cidade de Salvador, Bahia e que oferece uma aproximação maior com a literatura, com destaque para autores e autoras negras e negros.

Neste momento seguimos com uma campanha de arrecadação de insumos de higiene para as pessoas presas, tendo em vista que a pandemia limitou mais ainda as condições de vida das pessoas encarceradas, ainda que estejam privadas de liberdade e sob responsabilidade da gestão do estado da Bahia. Esta campanha começou em março de 2020 e já fizemos a doação de mais de 7 mil itens de higiene pessoal e coletiva nas unidades prisionais masculinas e feminina de Salvador.  Desde 2007 combatemos um governo do estado que colocou a população carcerária em contêineres, em jaulas, como se fôssemos animais numa situação de grande perversidade e promovendo a destituição da humanidade de em sua maioria, homens e mulheres pretas privadas de sua liberdade, conforme a legislação aponta e cujos demais direitos deveriam ser preservados. Continuamos lutando para que nossos corpos negros não sejam violados.

Neste momento também acompanhamos as famílias das vítimas da violência policial, com destaque para os familiares de dois meninos: Micael Silva, morto em junho de 2020 pela policia militar do estado da Bahia com um tiro de fuzil, após abordagem policial no bairro e Ryan, morto em 26 de março de 2021, também após abordagem policial enquanto jogava bola. Os dois eram moradores do bairro Nordeste de Amaralina, um bairro negro central na cidade de Salvador. Estes estão entre os casos que seguimos acompanhando, onde buscamos apoiar familiares no sentido de, seguindo os trâmites institucionais , possamos ter a garantia de responsabilização objetiva do estado  e para que, de alguma forma, as famílias consigam retomar e reorganizar as suas vidas, no contexto da tragédia de violência racial policial que nos atinge quotidianamente.

IDMJR: Com a pandemia do Covid-19 a atuação nos territórios ficou bastante impactada, assistimos A organização de movimentos sociais e organizações na distribuição de cestas básicas muito no eixo de caridade cristã. Por que atualmente não conseguimos discutir saques, desobediência civil e responsabilização do Estado?

Reaja: Na verdade, nós da Reaja,  entendemos que esta situação de privação  aos acessos a saúde, alimentação, educação formal, cultura, trabalho e renda, transporte seguro e de qualidade,  uma vida digna para pessoas pretas e pardas, já era anterior a pandemia. Obviamente que a pandemia aprofundou as desigualdades já existentes de uma maneira extremamente aguda. Desta maneira, continuamos fazendo o que já estávamos fazendo em termos de fortalecimento comunitário e envidamos esforços para seguir o seguimento daquelas famílias que já acompanhávamos e também das pessoas no interior do sistema prisional e seus familiares.

Em uma parceria com o Assentamento Marighela, localizado no interior da Bahia,  tendo como um dos coordenadores o militante Neto Onirê, um homem negro que tem feito uma luta importantíssima por terra e território no interior da Bahia, doamos alimentos in natura para as famílias dos estudantes da Escola Winnie Mandela, muitas delas que ficaram desempregadas no contexto da pandemia. Seguimos em apoio permanente as famílias que acompanhamos e seguimos também buscando meios para que as famílias não fiquem em privação. Além disto, seguimos com a campanha de arrecadação de insumos de higiene para as pessoas presas, tendo em vista que a pandemia limitou mais ainda as condições de vida das pessoas presas, ainda que estejam privadas de liberdade e sob responsabilidade da gestão do estado da Bahia.

Esta campanha começou em março de 2020 e já fizemos a doação de mais de 7 mil itens de higiene pessoal e coletiva nas unidades prisionais masculina e feminina de Salvador. Estou trazendo estes exemplos, para dizer que temos que nos organizar em várias frentes de luta: organização política comunitária preta a curto, médio e longo prazo e suprir a necessidade pontual de nos mantermos vivas e alimentadas,  inicialmente,  para fazer o enfrentamento.

Acreditamos na necessidade de discutir a desobediência civil e saques e responsabilidade do Estado e é o que estamos fazendo, na medida em que estamos buscando meios para construir nossa libertação. Mas não é fácil por que estamos vivendo uma guerra racial que nos coloca em grande desvantagem. Neste sentido precisamos construir estratégias autônomas pretas e é o que acreditamos e estamos fazendo.

IDMJR: Afinal, o debate de drogas é bastante conservador e retrógrado. Como a Reaja percebe a discussão da dita guerra as drogas? Por que não devemos entrar na proposta de reforma da polícia proposta pela esquerda partidária e boa parte das Organizações de DHs?

Reaja: Para nós, da Reaja, o debate de drogas serve para atualizar o racismo anti-negro. Estamos dizendo há um longo tempo que estamos vivendo uma guerra racial e nesta guerra racial a política de guerra as drogas é um dos instrumentos utilizados pelo estado brasileiro (leia-se todos os seus representantes: presidentes, governadores, prefeitos e a sociedade branca) para nos atingir com o aval da sociedade  brancocêntrica que  promove o ódio racial anti-negro.

Esta política tem representado uma justificativa importante para que pessoas pretas e pardas sejam presas arbitrariamente e mortas. Pessoas de pele escura e suas famílias são criminalizadas continuamente e quotidianamente e não vemos a prometida redução de números em relação aos citados efeitos negativos que as drogas ilícitas podem trazer (lembrando da hipocrisia que existe em relação as drogas licitas, como o álcool, por exemplo, que causa muitos danos individuais e familiares, físicos e psíquicos, entre outros e dos quais pouco se fala).

De que esquerda estamos falando? Da esquerda que consome drogas licitas e ilícitas em seus condomínios fechados e protegidos e que não sofre violência policial por que por ter a pele branca não tem características que se enquadram no perfil do suspeito padrão? Uma esquerda branca que não quer abrir mão dos seus privilégios? A esquerda branca que quer nos calar por que dizemos que não podem e não vão falar em nosso nome e em nome do sangue do nosso povo?

A esquerda branca que quer dizer como vamos nos defender do racismo anti-negro,  por que estão acostumados a nos ver nas cozinhas e nos jardins de suas casas desde que nasceram? As comunidades e bairros de maioria preta vivem sem a presença da polícia há muito tempo. A política de segurança pública que só coloca polícia nas nossas comunidades tem servido para controlar os bairros pretos, a exemplo de UPPs e Bases comunitárias, que longe da proposta vendida de acesso aos bens públicos não levam segurança e nem a melhoria dos serviços , como saúde e coleta de lixo, saneamento básico, entre outros.

O que vemos é lixo acumulado, ausência de saneamento básico, escolas fechando, crianças com medo. Este modelo de segurança pública e modus operandi das policias tem servido para proteger os interesses da sociedade branca e o controle da vida das pessoas pretas e pardas,  sitiadas nos bairros. Nós acreditamos na construção autônoma preta e no fortalecimento comunitário, formação politico-comunitária que nos permita olhar para um projeto de libertação.

IDMJR: Acreditamos que a Abolição das Polícias e fim das Prisões é o único caminho? Como a Reaja está pensando esse debate que hoje ganha mais força com os levantes antirracistas no mundo?

Não acreditamos em um único caminho. Não existe resposta fácil para um problema complexo como o racismo anti-negro que nos atinge e nos impõe privações quotidianas e o próprio direito a vida e a maneira como ele se atualiza e está presente em nossa sociedade. Nossa prática de atuação nos bairros onde vivemos e no interior do sistema prisional bahiano promovendo a reorganização das vidas das pessoas pretas, falando sobre nós, alertando para o papel destas instituições (prisão e polícia, entre outras) nas nossas vidas há mais de quinze anos, é o que tem se apresentado, para nós, como factível e coletivo, como os caminhos possíveis e necessários, como as frentes de luta necessárias e as estratégias para cada momento.

 A Reaja tem construído muitas coisas, por que vem vivendo e pensando a sua realidade e está construindo gradualmente as ações que acredita que podem construir um caminho que leve a reestruturação de nossas vidas. Fazer enfrentamento de diversas maneiras a uma máquina gigante que se impõe através da ameaça constante as nossas vidas, por ação e por omissão do estado brasileiro, não é fácil e sabemos disto. Vivemos isto na prática.

Vemos muitas pessoas que mudam seus discursos, que se aliam aos opressores, aos violadores dos nossos direitos em nome de projetos pessoais. É uma guerra racial. O debate sobre o fim das policias não é de agora e não entra na agenda das pessoas negras agora, nesse momento. Desde que a gente começa a olhar o mundo, pessoas pretas e pardas são o alvo preferencial das policias. Pessoas pretas desaparecem, são violadas e mães, pais e famílias negras lutam, adoecem e morrem em busca de respostas.

Organizações importantes e sérias de enfretamento ao racismo anti-negro no Brasil já vêm fazendo este debate desde meados dos anos 80, assim como o debate sobre as prisões. Por isto, fazemos a luta contra o ódio racial anti-negro, entendendo que a brutalidade policial impulsionada por este ódio é a expressão palpável desta realidade ou melhor, a seletividade do sistema de justiça criminal revela esta realidade. Entendemos que o que está em jogo neste debate é o não reconhecimento da humanidade de pessoas pretas e pardas. O não reconhecimento da nossa humanidade.

Para nós, esta é a questão que permite que as pessoas brancas naturalizem a morte de mais de 250 mil jovens negros por assassinato no Brasil, entre 2012 e 2017, que a sociedade naturalize que um adolescente negro tenha 2,6 vezes mais chance de ser assassinado quando comparado com adolescentes brancos e ainda a chance aumenta mais de 11 vezes quando se trata de meninos negros; que um homem negro tenha duas vezes mais chance de ser preso, quando comparado a um homem branco.

Nada disto abala esta sociedade fundada a partir da violência racial e no genocídio de povos negro e indígena, que enriqueceu com trabalho daqueles a quem nega e que tem a sua riqueza banhada em ouro e sangue. Sabemos que temos muito mais números que revelam esta negação da humanidade e que, por mais eloquentes que sejam, são incapazes de mensurar o impacto na vida do povo negro. Policias e prisões são a ponta do iceberg.

“Não se tem uma revolução quando se ama o inimigo; não se tem uma revolução quando se está implorando ao sistema de exploração para que ele te integre. Revoluções derrubam sistemas, revoluções destroem sistemas”. (Malcolm X)


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