
Por Fransérgio Goulart
Marcos Paulo e Joana Bonifácio tiveram a coincidência de serem mortos em estações de trem da Supervia, e a coincidência para por aí, pois o motivo que resultou em suas mortes, é algo histórico e que estrutura todas as relações e formas de controle de corpos e metodologias de genocídio no Brasil e na Baixada Fluminense nessa sociedade capitalista, o racismo.
Marcos Paulo, foi morto por um agente prisional na Supervia com o argumento que ele estaria roubando na linha férrea no dia 3 de julho de 2019.
Joana Bonifácio foi morta no dia 24 de abril de 2017 pelo projeto político histórico da ausência de estrutura da política de transporte público, ou seja, o espaço inadequado entre a plataforma e o vagão do trem foi o que a matou, descaso? não, o nome disso é racismo institucional.

A morte de Marcos Paulo e de Joana Bonifácio não são casos isolados, cotidianamente os trabalhadores ambulantes, popularmente conhecidos como camelôs, são perseguidos por seguranças privados e policiais militares, com casos de mortes também. A partir da morte de Joana , Rafaela Albergaria sua prima e família junto a Casa Fluminense acessaram a Lei de Acesso à Informação e solicitaram ao Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão ligado ao governo do Estado, os dados sobre mortes e acidentes na supervia e apenas observando os casos de atropelamento ferroviário que ocorreram em municípios cortados pelos trens da SuperVia, percebe-se que em 2017, ano em que Joana morreu, foram 66 casos, 30 a mais do que em 2016 e 41 a mais do que em 2015. No total, de 2008 a 2017, foram 285 casos de homicídio culposo provocado por atropelamento ferroviário e 138 casos de lesão corporal culposa provocada por atropelamento ferroviário nos municípios que são cortados por trens da SuperVia. Esses números mostram o racismo institucional.
Todo esse processo gerou uma mobilização por parte de familiares com apoio de organizações e movimentos sociais para a garantia da memória e justiça racial. E no dia 24 de abril, dia da morte de Joana Bonifácio, à Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial, organização da Baixada Fluminense, território onde esses dois jovens moravam tem como princípio entender e fomentar a construção de memória como um dispositivo de reparação e justiça racial,está propondo uma escuta a partir dessa entrevista com Cristina, mãe de Joana Bonifácio e Zoraide, mãe de Marcos Paulo com objetivo de ao lembrarmos, não esquecermos e com isso lutar para que essas violências cessem.
IDMJR: Joana Bonifácio foi morta por uma política de transporte ferroviária. O que você diria hoje para a Supervia e para o governador do Estado sobre essa morte?
Cristina Bonifácio: “Diria que tanto a supervia, como o governo são responsáveis pela morte da Joana e de tantas outras como ocorreu. A supervia vem praticando esses genocídios desde sempre. Viajar nos trens da supervia é está em risco constante de morte, todos os dias eles colocam as vidas dos usuários em risco com a falta de manutenção nos trens. São trens com portas que não abrem, ou não fecham, não tem sensor, câmera, são vãos enormes que cai uma pessoa, como aconteceu com minha filha, não tem seguranças na plataforma Enfim, é um descaso total com a população, com os usuários. São vidas que estão em jogo, são seres humanos que eles transportam, e não bichos . Vidas importam, somos importantes, nós temos importância para o mundo e para muitos. O governo deveria fiscalizar , cobrar da Supervia melhorias nos trens e plataformas, nos transportes ferroviários em geral, mas eles não se importam, são omissos, dando total liberdade para a supervia fazerem o que quiserem com vidas, para eles, governo e supervia o mais importante é dinheiro.”
IDMJR: ” A população da Baixada Fluminense é de maioria negra e usuária do transporte público. Vc acha que o racismo histórico no Brasil colaborou com a morte de Joana?”
Cristina Bonifácio: ” Sem dúvida nenhuma. A política predominante e vigente no país estimula o racismo e o genocidio. Somos massacrados e mortos todos os dias. Já nascemos marcados pelo simples fato de sermos negros e pobres.
IDMJR: Mães e familiares como você a partir do luto, transformaram isso em luta, principalmente por memória e Justiça. Compartilhe conosco as coisas que Joana gostava de fazer e lembranças dela para podermos continuar produzindo a manutenção de sua memória.
Cristina Bonifácio: A Joana era uma menina negra e pobre que tinha orgulho das suas origens, de seus descendentes, de sua negritude e que lutava e buscava o respeito pela nossa gente, pelo nosso povo, pelas nossas vidas. Queria mudanças, queria respeito, se amava, amava a vida, amava o próximo. Sonhava com dias melhores. E acreditava nos dias melhores. Ela gostava de ler, de dançar, era amiga em todas as horas, em qualquer situação gostava muito de estudar, sempre estudou muito, estava pensando no mestrado quando sua vida foi ceifada. Acreditava que era através dos estudos, da sabedoria que se alcançava os nossos propósitos, sonhos e objetivos. Amor é uma palavra que define Joana, ela exalava amor por onde passava. Era passiva, calma , serena e sábia. Conseguia em poucas palavras se fazer ouvir e ser entendida, muita sabedoria para pouca idade. Era um privilégio e orgulho ter a Joana em nossas vidas, ser amiga e conviver com ela.

Era muito amada por todos, vizinhos e amigos. Gostava muito de crianças, gostava de gente, amava a natureza, falava com as plantas, gostava de abraçar e falar com as árvores. Aqui no quintal onde moramos, onde ela foi criada e cresceu tem muitas árvores e plantas e lembro de muitas vezes vê-la abraçada com as árvores conversando e dizendo o quanto a amava, o quanto amava a natureza. Era lindo de se ver, ficávamos maravilhados e achávamos engraçado, os primos riam e tiravam fotos. Não sei se guardaram. A Joana era inacreditável, um ser muito iluminado. Veio para trazer amor, transformação, união e paz. E conseguiu. Deixou muito amor. Perdemos uma preciosidade, um exemplo de ser humano, de vida.
IDMJR: Para você o que seria Justiça? E qual seria a Justiça que desejaria hoje para Joana?
Cristina Bonifácio: “Justiça seria a super via assumir responsabilidades com a segurança dos usuarios, dando um transporte digno e seguro, com sinalizações, sensor, aviso sonoro, seguranças nas plataformas, reformas nas plataformas pois é um crime, um assassinato aqueles vaos onde caia uma pessoa, trens novos. É dever da supervia e governo zelar pelo bem estar dos usuários. É inaceitável o descaso de ambos, a falta de respeito pela vida, merecemos respeito. Isso não pode continuar. Somos amados e amamos, nos importamos com os nossos. Nossas vidas importam. Não quero vê acontecer com mais família nenhuma o que aconteceu comigo, não queremos perder mais entes queridos pela negligência da supervia e do governo. Ceifar vidas, tirar de nós o que temos de mais lindo e importante e não se sensibilizar, não se importarem. É muita falta de amor, amor ao próximo. Ninguém merece passar por essa dor, por esse sofrimento. Acordo todos os dias amputada, incompleta. Arrancaram parte de mim, tiraram de mim o que mais bonito eu tinha. A Joana era meu tudo, meu orgulho, minha realização. Sigo na esperança de ver mudanças, de melhorias na supervia, mudanças no governo, uma vida melhor para nosso povo e mais respeito pelas populações. Isso seria minha justiça. Vidas negras importam, corpos pretos importam.”
IDMJR: Como você descobriu que foi um agente do sistema prisional que matou seu filho em uma estação da supervia?
Zoraide: “Descobri pela reportagem, em um programa de televisão, onde o apresentador dizia: “que não era necessário cancelar o cpf”, e por terceiros, aí investiguei a fundo e segundo as informações que colhi, foi um agente penitenciário que o assassinou.”
IDMJR: Como foi a morte dele?
Zoraide: “Nunca vou esquecer! Deus falou comigo durante vinte e cinco dias, eu vi em sonho, conversei com ele, falei com ele que tivesse cuidado, não saísse para nada, não brigasse, não discutisse, não ficasse perto de nenhuma conversa que as pessoas pudessem tirar perguntas. Mas, ele achou que não ia acontecer nada naquele dia, e ele falou que seria o último, ia fazer e guardar o dinheiro para comprar as coisinhas do filho dele no período que estaria procurando emprego.Cheguei até arrumar um emprego para ele, mas ficou pouco tempo e saiu, ele não tinha maturidade, ficou muito preso no sofrimento dele, encontrou nos amigos a atenção que procurava e se sentia confortável e juntos se colocavam em risco. Quando não estava nesse círculo de amizade percebia uma melhora no seu comportamento.O dia de sua morte ficou marcada no peito, mexe tanto comigo, meu Deus! Quando olho aquelas crianças dele, que eu vejo o jeitinho do menino com os trejeitos dele, meu Deus…Tudo muito marcante.”
IDMJR: Você pode falar como era sua vida e a do seu filho Marcos Paulo antes do assassinato dele que foi realizado por um agente prisional?
Zoraide: “Eu comecei a cuidar dele aos 6 meses de idade, como eu falei, a mãe não quis ficar com ele. Ela (a mãe biológica) era muito nova e meu irmão que é o pai entregou aos meus cuidados. Meu esposo me ajudou muito nesse processo. Era uma criança saudável, alegre e estudava, tinha bom aprendizado. Mas, aos 12 anos, ele perdeu minha mãe, avó dele. A minha mãe era o pilar da família, éramos a base familiar dele, daí em diante o seu comportamento mudou, ficou inseguro e revoltado, dizendo que se minha mãe estivesse viva ele não estaria sofrendo. Eu gostava dele e percebi que o psicológico dele estava muito abalado. Então começou a usar maconha, pois ele dizia que era pra relaxar. Observei que ele se colocava em risco e por diversas vezes tentei ajudá-lo. Ele ficou um jovem inseguro, sofria muito, se sentia rejeitado, sabia a história da mãe que o deixou. Era muito amado pelos(as) amigos(as), todos(as), falavam muito bem, até hoje, quando vou na igreja eles pedem o endereço de onde ele foi enterrado para colocar flores, outra(os) querem uma lembrança com a foto estampada na camisa, e ainda fizeram um vídeo para homenageá-lo”.
IDMJR: Ele frequentava a igreja contigo?
Zoraide: “Sim, chegou a frequentar e aceitou Jesus, mas depois se desviou. Ele carregava com muita tristeza a história de abandono da mãe, todo esse sofrimento o levava a fazer uso de drogas, ele dizia que era para amenizar o nervosismo. Foi pai cedo, amava demais seu filhinho, tinha medo de perdê-lo. Parte da família o criticava, eu o compreendia, paparicava, dava amor, pois sabia a dor que ele carregava, cada um sabe o tamanho da dor que carrega!”

Uma reflexão importante é como a Igreja pode ser ao mesmo tempo saída, como um instrumento de controle dos corpos, parte de mais uma engrenagem do racismo.(IDMJR)
Passados 04 anos da morte de Joana Bonifácio e dos quase 02 anos da morte de Marcos Paulo, a Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial afirma que estamos construindo nossa garantia do direito à memória e outras sociabilidades fora da lógica desse Estado Capitalista e racista, logo urge pensarmos na nossa resistência histórica e que nossa história não se pode se findar na luta por dentro do capitalismo e desse Estado, que é a máquina de violar direitos.
#JoanaPresente
#MarcosPauloPresente