0 10 min 3 anos

Por: Fransérgio Goulart

Sou de uma geração que quando ouvia a palavra protocolo, logo vinha na minha cabeça questões e procedimentos ligados à saúde, a garantia de vida. Chegamos aos dias atuais e como morador de favela, essa mesma palavra, me traz dor e muita angústia.

Porque a questão de protocolos hoje está intimamente ligada à violações de direito e tudo isso me remete a morte, perdas e a muita dor. A morte de irmãos e irmãs faveladas e ao choro de mães e familiares vítimas da violência de estado. A ideia de protocolos vem junto com a questão de operações policiais, no vocabulário da saúde, uma operação representa  a extração de um tumor, a retirada de algo maligno em um organismo. Por isso, operações policiais por si só na linguagem, já é permeado da Necropolítica e pensar em protocolos para algo tão aviltante nem de longe representa garantia de direitos humanos e sociais, apenas métodos mais eficientes de mortes. 

Ressalto que antes da formulação da ADPF 635* já haviam organizações que se interessavam em construir protocolos. Em julho de 2019 o portal G1 publicou uma matéria que dizia que a polícia civil criou um grupo de trabalho para definir normas/procedimentos, ou seja, para criar protocolos para utilização de drones, helicópteros (entenda – se Caveirão Voador) e snipers nas favelas e periferias do estado do RJ.

Esse grupo foi criado a partir de uma resolução publicada no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro no dia 16 de fevereiro de 2019. Nessa resolução consta que esse grupo além da Polícia Civil, teria a participação do Ministério Público Estadual. 

Aqui vale dizer  – e lembrar de forma posicionada, que Polícias e Ministérios Públicos são duas das instituições públicas mais racistas e genocidas da história do Brasil. Enquanto um é agente direto da produção da morte, a outra fica a serviço do Estado para realizar a absolvição e legitimação de quem nos mata.

O cenário fica ainda pior, quando grande parte de um campo dito progressista e/ou esquerda (incluindo parte do sistema de justiça) legitima e celebra a criação desses protocolos de operações policiais, a partir do discurso da dita redução de danos. Não queremos reduzir nossas perdas, pois o que desejamos é não mais ter que enterrar os nossos.

Ademais, queria ressaltar uma questão sobre privilégios. É muito cômodo para esse grupo privilegiado avaliar isso como um avanço e possibilidade de controle das policiais. Pois, esses senhores e senhoras não são atacados pelo braço armado do Estado, esses instrumentos da morte como snipers, drones e Caveirões aéreos não estão nos territórios que essas pessoas moram e habitam confortavelmente, logo esse corpo privilegiado não é atingido pelas consequências políticas e materiais daquilo que defendem. 

Para nós favelados/as e para Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, vale reforçar a frase slogan da Campanha Caveirão Não: Favelas Pela Vida e contra as Operações construída por mães e familiares vítimas da Violência de Estado e por nós, das favelas e periferias.

O que precisamos discutir e centralizar em nossas lutas é o não uso dos caveirões, snipers e drones nas favelas e periferias do estado do Rio de Janeiro, queremos o fim das operações policiais.

Segundo documentos da ONU, aeronaves só podem serem usadas como plataforma de tiros em caso de guerras declaradas, que não é o caso do Brasil, mesmo sabendo que historicamente eles tentam nos construir como os inimigos e territórios a serem abatidos.

Já sei que muita gente nessa hora vai tentar rebater dizendo: vocês querem deixar os traficantes de drogas tranquilos e que a polícia não reaja ao confronto, é isso?

“Não queremos reduzir nossas perdas, pois o que desejamos é não mais ter que enterrar os nossos”.

Fransérgio Goulart

Respondo a esses comentários com uma pergunta: vocês acham que existe crime e criminalidade sem a participação do Estado?

Diante de toda exposição queria afirmar que precisamos tomar muito cuidado com essa ideia e construção de protocolos de uso da força policial. Afinal há uma linha tênue entre o ilegal e legal e os protocolos vêm se transformando em mais uma ferramenta da necropolítica cotidiana nas favelas e periferias.

Vejamos isso com a experiência das armas ditas não letais e o caso da empresa Condor (fabricante de armas não letais no Brasil), fruto dessa parceria Estado-Empresa, os mesmos vêm criando protocolos para uso dessas armas ditas não letais. Porém, quando o uso desses artefatos gera mortes e outros danos a vida da pessoa humana, é justificado na maioria das vezes pelo uso indevido, ou seja, esses protocolos acabam legitimando as mortes pois gera proteção ao Estado violador, além de fortalecer a política do punitivismo do indivíduo, tirando qualquer possibilidade de responsabilidade do Estado.

Aqui tentando imaginar um protocolo do uso do Caveirão Voador construído por esse grupo, imagino uma situação de uma operação em uma favela, que devido ao uso do Caveirão como plataforma de tiro, uma pessoa acabe sendo alvejada e morta, qual seria o discurso do Estado?

Em 1º lugar haveria o solene pedido de desculpa do Governo por essa morte e também iriam informar que todos os protocolos para operação foram seguidos. Porém devido ao uso individual de maneira equivocada dessa arma, o resultado foi a morte de uma pessoa.

 Os protocolos isentam a responsabilidade do Estado no genocídio do povo negro e ainda coloca na questão individual de cada agente de segurança pública a falta de treinamento para uso de armas. São protocolos que legitimam a morte e naturalizam a perda de vidas durante um confronto armado nas ruas e vielas das favelas e periferias que na verdade em uma sociedade séria não deveriam nem existir.  

O que deveríamos discutir é a motivação e o interesse constante em produzir novas tecnologias e instrumentos de morte, bem como,  sua relação com as empresas e indústrias e o Estado. O Ministério Público ao invés de fortalecer protocolos para operações policiais, poderia investigar a relação das empresas produtoras dessas tecnologias e a participação do Estado em intensificar a militarização dos territórios. 

Principalmente a relação dessas empresas da indústria armamentista tem investido no pleito eleitoral através do financiamento de  candidaturas, e nas suas construções de lobby político? Uma investigação densa e intensa sobre os fluxos econômicos e de transações financeiras nacionais e internacionais da indústria das armas e sua íntima relação com o Estado.

A ação de descumprimento de procedimento federal – ADPF 635 que questiona a política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro e com a recente liminar do ministro Faccin que suspende as operações policiais no contexto da Pandemia do Covid-19, se apresenta como uma oportunidade única de fato. Uma oportunidade de construirmos com o ineditismo do protagonismo e liderança das organizações das favelas como participantes e Amicus Curiae dessa ADPF. A possibilidade de uma política de controle das polícias com a participação popular e com o ministério público como cumpridor da constituição federal, se tornando de fato a instituição que exerça o controle das policiais. O Ministério Público não pode agir apenas depois das violações foram cometidas, como historicamente vem fazendo.

Queremos viver e não apenas fazer o que historicamente já fazemos: sobreviver!


* A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial integra a articulação de organizações e movimentos sociais que fazem parte da ADPF 635 que foi ajuizada em novembro de 2019 no STF pelo PSB. A ADPF 635 solicita que o Estado do Rio de Janeiro elabore e encaminhe ao STF, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, um plano visando à redução da letalidade policial e ao controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança fluminenses, que contenha medidas objetivas, cronogramas específicos e previsão dos recursos necessários para a sua implementação. Nessa trajetória conseguimos, no dia 05 de junho, uma primeira vitória com a suspensão de operações policiais no contexto da pandemia do COVID-19. Vitória das Favelas & Periferias!

Deixe uma resposta