
Por Rayssa Pereira
Fátima Monteiro, mulher negra que luta pela a liberdade de todas as mulheres, também é agente comunitária de saúde em Jardim Gramacho, moradora de Duque de Caxias e atua com eixos de garantias de direitos da população. Integrante do Fórum de Mulheres, do Movimento Negro Unificado, da Comissão Pequena África e do coletivo Parem de Nos Matar, sempre na luta contra as opressões e pela liberdade do povo preto e nessa entrevista falará sobre as trajetórias percorridas, enfrentamentos contra as violências do Estado e das perspectivas de um futuro digno e feliz para as mulheres negras em nossa sociedade.

IDMJR: Como você iniciou sua luta contra a violência de Estado? Teve um motivo específico que foi marcante?
Fátima: Sim, a partir de ter percebido a convivência com a violência constante do estado propriamente dito, nas áreas onde a gente reside, nas favelas e comunidades, onde eu morava até um tempo atrás, esse foi um dos grandes motivos. O índice de violência e de inserção da polícia dentro dos nos nossos era uma situação sub-humana, o esforço que faziam e ainda fazem até hoje pra disseminar essa violência como demonstração de poder, pra dizer que quem manda nesse local, ainda que nesses espaços tenham facções ou outra coisa que seja, mas eles deixam bem claro que ali quem manda são eles. E ali, percebemos que muitos jovens morriam e a única coisa que prevalecia era o que o estado dizia “morreu porque estava no tráfico”, e muitas das vezes isso não se aplicava.
A Baixada Fluminense é uma região muito violenta e culminando com isso tem as promoções descabidas do Estado de promoção de violência contra todos os moradores, com a desculpa de combater o tráfico chega nas comunidades atirando, xingando, humilhando as mulheres, os jovens dessa comunidade, independente de qualquer coisa, ou indo para a escola, trabalho, mercado, a abordagem vinha sempre no estilo de marginalizar todos de forma iguais. E essa era a maior das inquietações, não ter direito ao território onde nasceu e se criou, dali ser um espaço de perigo, que passava a correr mais risco de vida do que em outros pontos do Rio de Janeiro, ou seja, nos espaços onde a polícia e o Estado são “presentes e parceiros” para proteger o patrimônio, o cidadão ou ser útil em outras situações fora essa de violência, mas esses espaços não são nas favelas, nesses espaços já é pra chegar botando terror, porque eles precisam e querem que as pessoas saibam que eles são o poder.
Mas, também tinha o medo, de preservação da sua própria vida, dos seus, o que era muito importante o que acontece com a comunidade, muitas das vezes as pessoas são mortas, jovens que não tinham nenhum vínculo com o crime, mas se a polícia chegar na hora e estiverem na rua, todo mundo corre e os policiais mandam bala, e ai o que acontece? É a versão do policial que fica lá no registro de ocorrência e a família não tem força pra lutar contra isso, por seus direitos, não tem força para estarem buscando “limpar o nome dos seus”, e quando tem são poucas que conseguem, pois a favela não tem voz dentro do judiciário e nas delegacias, sempre são tratados muito mal e esse abuso institucional dentro da questão da segurança é uma coisa que as pessoas ficam contando com a justiça divina. Quando chega na delegacia para denunciar alguma questão a pessoa é tratada como a pior dos marginais, os familiares de vítimas de Violência do Estado não são tratados como humanos.
E essas foram umas formas que eu me achego para essa luta, de 1999 para os anos 2000, eu já estava me engajando nos coletivos de combate a violência, racial e policial, e em 2002 entrei efetivamente para o MNU, onde eu posso com outros pares me fortalecer e fortalecer a luta antirracista e de violência policial.
“E nada acontece, como justiça para o povo preto. Então trazer a memória, recontar nossas histórias e mostrar todas as referências para que cada dia a mais ocorrer um resgate do que éramos e das diversas possibilidades que podemos ser”.
Fátima Monteiro
IDMJR: Mulheres negras são centrais na produção da luta cotidiana contra a violência de Estado, mobilizando os territórios e fazendo a denúncia e acompanhando as vítimas. Como você analisa a ação histórica das mulheres negras, marcos simbólicos, ganhos, perdas e nesse momento os muitos retrocessos?
Fátima: As mulheres negras sempre estiveram no centro dessas lutas, esse é um fato, pois sempre foram elas que sofreram as maiores violências, desde que atravessaram o Atlântico forçadas para o Brasil, e elas sempre produziram a resistência porque foram essas mulheres que davam seus jeitos de garantir a sobrevivência de homens, de seus filhos, mesmo em situações tão adversas e de dominações, sendo vítimas, sofrendo castigos cruéis. E essas mesmas mulheres ao longo da história vinda dos nossos ancestrais, que deram um jeito de garantir a nossa sobrevivência, então hoje nós mulheres negras continuamos fazendo aquilo que as mulheres negras do passado faziam, como Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares, como nossas referência que vieram depois delas, trazendo outras questões através da escrita como Lélia Gonzalez dentre muitas referências de mulheres que lutaram contra essas opressões, porque analisando bem, quantos anos tem só a polícia militar? Quantos anos tem no Brasil? Se você escolher o período que ela tem, aquela da criação nesse ponto histórico, ela foi criada para repressão e para opressão e tinha um público e tinha uma classe de pessoas que era destinada. E ao longo da história algumas houveram ainda mais proibições, que foi criado esse esquema esse projeto.
Nós mulheres negras, além de sermos maioria tendo mulheres na população brasileira nesse recorte de gênero sempre fomos oprimidas dessa questão territorial, cada vez mais manifestando essa coletividade busca de liberdade busca de igualdade e busca de segurança, denunciando, apesar sim de tudo que o Estado faz para impedir que avancemos, porque o objetivo é manter essa população preta muito longe daquilo que nós estamos custando, a precarização, falta de contribuição do Estado para o crescimento da comunidade com políticas públicas de qualidade.
Pois, somos a base dessa pirâmide que sustenta toda essa sociedade com seu trabalho com a sua mão de obra com as suas contribuições culturais, mas em troca o que ela recebe é morte, violência negação dos seus direitos de cidadã, então cada vez mais mulheres têm se levantado nas comunidades, não se conformando com a violência do estado, não se calando e colocando a sua própria vida para denunciar e para dizer que nós estamos aqui para fazer realmente o movimento pela valorização das vidas das pessoas negras e das próximas gerações.
IDMJR: O assassinato de mulheres negras aumentou de forma absurda e na Baixada Fluminense as áreas dominadas por milícia também cresce tornando alguns casos de feminicídio diretamente ligados esses grupos. No boletim de feminicídio e segurança pública da IDMJR, identificamos essas novas realidades que se estruturam no racismo histórico e no capitalismo sendo reinventado. Como você vê essas estruturas se formando atualmente e como elas impactam na luta dentro dos territórios?
Fátima: Quando nós Mulheres Negras começamos a entender que precisava-se fazer uma pesquisa com o recorte racial, porque se falava muito da questão da violência com a mulher branca que estava no centro dessa discussão, então quando fomentamos pesquisas que apontasse como era a realidade da mulher negra, onde não existia nem dados. E aí quando nós começamos a falar sobre feminicídio, foi uma das potências e começou o debate de muitas mulheres negras e aí graças a nossa contribuição de trazer a tona que nós existimos, que estamos sofrendo violência e que o Estado não estava nem aí para isso.
E a gente pode perceber que esse é um processo de privilégios e que essas mulheres brancas têm pelo simples acesso às informações, porque muitas mulheres negras têm uma jornada dupla ou tripla que não permite a mesma coisa. E ainda com a questão do homem agressor, que acham que são donos dos nossos corpos, como se fosse uma propriedade, e quando não é obedecido, apanha. Precisamos avançar na questão do feminicídio da mulher negra, que cresceu em relação da mulher branca, ou seja, a política criada para essas mulheres foi efetivamente certa, mas para nós negras não. Por isso precisamos intensificar cada vez mais a contribuição de novas perspectivas para nós, pois não precisamos e nem devemos viver numa sociedade onde sofremos violência constantemente, não podemos naturalizar isso, embora que todos os dias convivemos com violações, podemos muito bem viver conosco mesmo.
IDMJR: Pensamos a Justiça Racial como processos de enfrentamento às desigualdades raciais, e essa justiça tem sido efetivada pelos movimentos sociais. O que significa Justiça Racial e como ela é percebida na prática da ação de luta para você?
Fátima: É muito importante ter uma justiça que leva em consideração as desigualdades raciais que acompanha a população preta desde sempre, pois ela é um elo que liga a periferia ao judiciário de forma segura, com o suporte aos movimentos sociais na qual é discutido como estão os territórios e como são acontece as violações, fazendo o enfrentamento de forma segura sem colocar ninguém em risco, mas denunciando, então a justiça é percebida por mim como a contribuição de expor que essas violências, que pessoas estão sendo mortas e que as mesmas por si só não conseguem se defender.
Mas, a Justiça Racial tem importância, pois o conjunto de ações que dão visibilidades a questões que impactam profundamente a população preta. E a IDMJR tem iniciado um processo que chamo até de inovador, pois mais a frente com certeza vamos poder contar com parcerias da própria população de se sentir à vontade para chegar junto para debater a questão de segurança pública no ponto de vista de quem está nos espaços marginalizados.
“É preciso saber que não é uma luta fácil, mas que resistiremos e alcançaremos o nosso objetivo, para que venhamos viver sem medo, saudáveis, felizes e com liberdade”.
Fátima Monteiro
IDMJR: Um dos eixos que atuamos é a Memória, no qual buscamos promover um sentimento coletivo de reprovação a qualquer tipo de violação, em especial da Violência de Estado e do não esquecimento como forma de preservação da memória e luta pela vida. Por isso, entendemos a justiça racial como instrumento de reparação histórica. Entrando no campo da memória, o que significa o Dia da Mulher Negra Latino e Caribenha pra você?
Fátima: A questão da memória é um ponto muito importante e preocupante, pois as histórias que foram passadas para nós desde crianças são as que aprendemos nos livros da escola, na qual éramos escravos e serviçais, mas os movimentos negro tem feito e faz é mostrar a outra versão, que nossos antepassados vieram forçados, foram escravizados e explorados de todas as maneiras mais absurdas. E também que a nossa história não é apenas de dor, viemos de reis e rainhas, que tinham terras e foram roubadas pelos brancos, mas com muito custo, que lutamos e resistimos assim como até os dias de hoje.
E que todo esse povo escravizado que construíram as nossas cidades, como por exemplo, o arquiteto André Rebouças que construiu grandes coisas no Rio de Janeiro. Como recentemente foram construir o VLT e descobriram o Cemitério dos Pretos Novos, e isso reviveu as nossas memórias. E essas memórias de violências passadas também são importantes para trazer o nosso povo, pois a partir do momento que sofremos uma violência muito grande no passado e que ainda hoje o Estado continua provocando essa mesma violência, esse procedimento até hoje, pois também temos governantes que disseminam essas violências, se declarando racistas, homofóbicos, etc. E nada acontece como justiça para o povo preto. Então trazer a memória, recontar nossas histórias e mostrar todas as referências para que cada dia a mais ocorrer um resgate do que éramos e das diversas possibilidades que podemos ser. Nós mulheres negras, doutoras, escritoras, como Conceição Evaristo, uma grande pensadora contemporânea, na qual nós mulheres negras a reconhecemos.
Pra mim o Dia da Mulher Negra é um dia de acirramento de luta contra o machismo, o racismo, a desigualdade. Um dia de grande significado de memória, luta e acesso. Representa perspectiva de um Brasil a onde a mulher é incluída politicamente, nos espaços que ainda não estamos, pois estamos na construção de tudo, mas são negadas as possibilidades.
IDMJR: Qual sua mensagem para as Mulheres Negras que fazem a luta contra a violência de Estado hoje?
Fátima: A minha mensagem para todas as mulheres negras que fazem a luta contra a violência do Estado hoje é que possamos sempre seguir e nunca desistir, enquanto houver mulheres sofrendo a violência, que não tenham consciência que sofrem abusos, que não sabem a onde recorrer, que continuemos nessa luta para levar informação para ajudar de alguma forma, pois existem várias formas, é nos mantermos unidas para pressionar o governo, o legislativo e judiciário. E quanto mais pudermos fazer, até a gente conseguir mudar essa realidade e acabar com essa situação. Ter o cuidados com as nossas crianças e jovens, ensinando sobre como agir nessas situações, pois aprendemos muitas coisas quando somos pequenos. É preciso saber que não é uma luta fácil, mas que resistiremos e alcançaremos o nosso objetivo, para que venhamos viver sem medo, saudáveis, felizes e com liberdade.
O racismo religioso e uma das faces epistemicidio que já vivemos por longos períodos hoje se cria uma rede de otomicidio, o assassinato da razão de viver. Mãe Meninazinha, está certa e preciso criarmos estratégia de sobreviver a barbare, e transforma esse período em breve Holocausto, de um projeto que não foi a frente.