
Por: Monique Rodrigues
“Pensar que essa travesti pode transitar na comunidade no horário de escola, comercial, no horário de funcionamento dos espaços formais, ainda não é uma realidade pra gente, ainda existimos apenas na noite. “
As questões socioculturais que impactam a vida das populações LGBTQIA+ são historicamente pautadas por situações relacionadas à violências constantes e sistematizadas pelo Estado, por processos educacionais e sobretudo pela ausência organizada de resposta diante dessas demandas. As vulnerabilidades estruturais que essas populações estão colocadas são as representações diretas do machismo e racismo que as mulheres negras vem denunciando e produzindo ações de denuncia e resistência.

Neste 25 de Julho, dia da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha, celebração pela vida de Tereza de Benguela e marco da força e união de mulheres negras no enfrentamento às violências, a gente aponta mais um debate fundamental: Onde estão as mulheres negras trans, travestis e lésbicas nos lugares de reivindicação compartilhados pela luta coletiva? Nossa entrevista Gilmara Cunha traz reflexões importantes sobre esses contextos.
Monique Rodrigues: Antes de desenvolver ações nesses lugares, vocês pensam em estratégias de proteção? Nos fale um pouco disso?
Gilmara Cunha: Sim, Sou Gilmara Cunha. Mulher Travesti, negra, favelada, 36 anos. A gente pensa um projeto de proteção, porque quando a gente inicia um trabalho dentro desses territórios, são por meio das lideranças locais, que vão garantir a segurança e a proteção, não só de quem vai desenvolver as ações mas também da própria pessoa de dentro do território.
A gente ainda não tem uma ferramenta de segurança e de proteção, então a gente acredita que a proteção maior é fazer com que a sensibilização chegue, nos heteronormativos, que aí eles vão garantir ou não a nossa sobrevivência da população dentro desse espaço.
A gente entende que quem dita a regra da sociedade são as pessoas cisheteronormativa que vão desenhar a política e construir esse lugar de proteção. A gente pensa nas grandes redes de proteção que a gente tem, que envolve instituições não governamentais, e órgãos públicos, é dessa maneira que a gente vê projetos de proteção. Especificamente a nossa população, que a gente atende, que é de território de favela, LGBTQIA+, porque essa população vive à margem da margem.
Então a gente tem aí uma população que é protegida, os heteros, quando é LGBTQIA+ em território de favela, a insegurança é maior, porque enquanto o movimento LGBT ainda pensa na adoção, no casamento, a gente tá pensando na existência dentro do espaço, então a gente forma essas pessoas para serem agentes promotores de direitos humanos na tentativa de garantir a vida da nossa população.
Monique Rodrigues: Como desenvolver ações e projetos sociais em áreas militarizadas?
Gilmara Cunha: É muito difícil, você tem que exercer o papel de mediadores de conflito o tempo todo. Estamos sempre negociando a existência dessas pessoas, e quando se trata de ser uma mulher travesti existe um julgamento de subjetividade muito ruim. A gente tem que mostrar três, quatro vezes o quanto a gente é boa naquilo que a gente faz, no desenvolvimento dos projetos, e quem são projetos que vão assegurar a vida dessas pessoas.
A Maré, por exemplo, não é militarizada pelo Estado mas é militarizada pelos civis armamos, então a gente luta contra dois poderes, o Estado que vem através da Segurança Pública e que entende que tem que ser ceifadas as vidas e o próprio tráfico que ali vai cercear a vida das pessoas LGBTQIA+, por entender que esses corpos são descartáveis. Qualquer problema que aconteça, a nossa população não tem o privilégio de negociar a sua existência. Enquanto héteros ainda conseguem ter uma negociação para minimizar os danos, pra gente é muito difícil sobreviver, resistir e existir dentro desses espaços.
Monique Rodrigues: Você já deve ter convivido e visto assassinatos produzidos pelo Estado onde mora. Como é viver com essa memória, e como tentam ressignificar essa dor?
Gilmara Cunha: Olha, a gente lida com isso cotidianamente, as violências, os assassinatos produzidos pelo Estado dentro dos territórios de favela. É muito ruim a gente ver os agentes de Segurança Pública, que deveriam cuidar da nossa vida, pelo contrário eles nos exterminam, como disse na política de extermínio, é muito difícil viver nesse lugar e são dores que a gente leva para o resto da vida.
Uma das ferramentas que a gente pensa, pra mostrar nossa existência, são a partir das ações e trabalhos construídos das organizações que existem dentro dos territórios e vão pautar as questões de direitos humanos, da vida, a valorização do ser humano.
Nosso país é muito desumano. As pessoas tendem a assassinar por questões torpes, sem motivos. Para mim é muito doloroso, porque é uma luta cotidiana que a gente enfrenta. A pergunta é sobre o Estado mas antes existe um poder aqui dentro que vai minar a vida de muitas meninas e meninos gays, lésbicas, travesti e transsexuais e as metodologias que são utilizadas são muito loucas, o quanto esse corpo não tem valor nem espaço tanto aqui dentro quanto na sociedade.
Monique Rodrigues: Você consegue identificar dentro da sua realidade uma proposta para enfrentar essa Violência do Estado nesses territórios militarizados?
Gilmara Cunha: O que eu consigo visualizar e identificar dentro da realidade a qual eu convivo, a proposta de enfrentamento, eu vejo que é através desses trabalhos que a gente desenvolve. Não tem uma receita porque o Estado faz várias leituras sobre esses lugares, sobre essas vidas, mas como eu falei antes o Estado é mais um.
Quando se trata da minha população não tem ainda uma fórmula que vai minimizar as violências sofridas nesses espaços. Acho que é só através da humanização que a gente consegue de fato chegar a algum lugar né. De alguma forma a gente consegue, hoje, dialogar isso dentro desses territórios, coisa que há 10 anos atrás não era possível falar sobre gays, lésbicas, travesti e transsexuais porque não temos espaços para existência.

Somos carta fora do baralho e não temos lugar na sociedade. As travestis ainda tem que ofertar os seus serviços de prostituição, elas não estão no horário comercial de existência na sociedade. Pensar que essa travesti pode transitar na comunidade no horário de escola, comercial, no horário de funcionamento dos espaços formais, ainda não é uma realidade pra gente, ainda existimos apenas na noite. Quando isso se tornar realidade talvez a gente consiga minimizar essas violências, pelo Estado e pela sociedade como um todo.
A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial se insere nesse debate por entender que essas populações são parte construtiva de ações de resistência e memória, da mesma forma que luta pela condição primordial de se manter vivas, mas sobretudo por assumir nossa parte de responsabilidade junto a esses grupos.
A sociedade que mais mata LGBTQIA+, que abandona familiares e amigos, que criminaliza e marginaliza essas pessoas, precisa ser revista no impacto cotidiano das ausências e silenciamentos que reforçamos sempre que não problematizamos a falta de diálogo e presença de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais, queer, intersexo, assexual e mais.
Somando a condição racial de uma negritude marcada pela violência essas demandas são urgentes e as resistências precisam ser mostradas como forma de relação entre nossas ações. O patriarcado, o racismo e a heteronormatividade são estruturas que alicerçam barreiras em todas as esferas da existência da população LGBTQIA+, sendo nosso compromisso derrubá-las junto com o capitalismo e o Estado.