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Por Joel Luiz

Quando falamos de “guerras às drogas” ou política proibicionista de drogas, estamos falando de questões raciais e de classes. Seja na justificativa para o início da caça empreendida a substâncias criminalizadas, seja nos efeitos da sua execução, sabemos que é a população negra, sobretudo a residente em periferias, que arca com ônus, nas suas mais variáveis formas, dessa famigerada guerra executada em seus territórios.

Assim sendo, falar de reparação pelos danos causados pela dita guerra é também tratar de justiça racial. Qualquer ato que vise uma efetiva reparação pelos danos causados em décadas de políticas proibicionistas, irá incidir, de sobremaneira, na população negra e territórios racializados. E isso se dará tanto no Brasil, tal qual já vem ocorrendo nos EUA.

Analisar experiências a quanto andas políticas e projetos de reparação estadunidenses e no mundo, são  essenciais na construção do projeto brasileiro, desde que possamos entender que as construções raciais passam pelas diferentes formas de colonização.

Um levantamento publicado no início de 2018 pela Drug Policy Alliance, grupo que se dedica a expor os efeitos de quase cinco décadas da chamada “guerra às drogas” nos EUA, mostrava que 80% das pessoas presas por crimes ligados a entorpecentes no país de Donald Trump eram negras ou latinas, embora esses dois grupos somem 25% da população do país.

Segundo as estatísticas mais recentes do próprio governo estadunidense, crimes com drogas são a razão da condenação de 46% dos detentos — um contingente de 70 mil pessoas, maior do que o reunido nas cadeias do Tio Sam por qualquer outro delito.

No Brasil temos os crimes vinculados a Lei de Drogas, 11.343/06, responsáveis por levar 20% das pessoas privadas de liberdade ao sistemas prisional. Um passivo que atualmente conta com, aproximadamente, 200 mil pessoas, 1 em cada 5 pessoas. Esse número de duzentos mil compreende mais gente do que a população de 96% dos municípios do Brasil. Falamos de um contingente significativo de corpos alcançados.

Os segmentos mais esclarecidos da indústria da cannabis reconhecem que o setor já nasce com um passivo a resgatar: os excluídos, marginalizados e encarcerados pelo combate à erva que marcou os últimos 80 anos dos EUA e que no Brasil alcança um século na próxima década.  Encontrar essas pessoas é muito fácil porque elas são as mesmas e aparecem em todas as estatísticas, independentemente do lugar do mundo onde se faça o levantamento. São majoritariamente negros, moradores de periferias e bairros racializados e pobres.

Estudo realizado pela agência pública na cidade de São Paulo revelou que os juízes condenam proporcionalmente mais negros do que brancos. Ao analisar mais de 4 mil sentenças de primeiro grau por crimes de tráfico de drogas julgados na capital paulista em 2017, os jornalistas descobriram que 71% dos negros foram condenados, contra 67% entre os brancos.

“De maneira geral, os negros também foram processados ​​por tráfico com menos quantidade de maconha, cocaína e crack do que os brancos. Entre os réus brancos foram apreendidos, na mediana, 85 gramas de maconha, 27 gramas de cocaína e 10,1 gramas de crack. Quando o acusado é negro, uma medida é inferior nas três substâncias: 65 gramas de maconha, 22 gramas de cocaína e 9,5 gramas de crack ”, relatou a Public. Essa pesquisa aponta um, dentre muitos, exemplos de que a reparação trata de corpos livres, porém, sobretudo da população que preenche as galerias de presídios pelo país, respondendo pelos crimes da lei de drogas.

Nos Estados Unidos o Bureau of Cannabis Control (BCC), órgão regulador estadual, anunciou nesta semana os beneficiários do seu programa de equidade, que distribuiu 10 milhões de dólares para ações em 10 cidades e estados. Pelas regras, tornam-se viáveis como locais que promovem iniciativas com foco na inclusão e apoio a comunidades e pessoas que sofreram impactos desproporcionais como consequência da criminalização da cannabis.

Além de recrutar e incentivar a participação dessas pessoas na economia da cannabis, procuradores do Estado Los Angeles informaram, em abril, que trabalharam para eliminar os antecedentes criminais de cerca de 54 milhões de condenados por infrações relacionadas a ervas.

Outro projeto relevante no contexto estadunidense é o do ex pré-candidato à presidência dos Estados Unidos, o congressista Beto O’Rouke. O plano de O’Rouke é o primeiro a sugerir pagamentos a indivíduos que foram presos por acusações vinculadas a cannabis.

O plano de O’Rouker se dissocia efetivamente dos demais, quando propõe a remuneração dos que tiveram sua liberdade afetada pela política proibicionista. Enquanto candidatos rivais propuseram programas de financiamento para começar a reparar os danos da guerra às drogas por meio de treinamento profissional, assistência jurídica, esforços de eliminação e empréstimos para pequenas empresas de maconha pertencentes a indivíduos afetados.

“Portanto, qualquer debate antiproibicionista passa pela centralidade da reparação histórica do povo negro”.

(Joel Luiz)

Outra proposta significativa, e com facilidade de ser implementada, é o imposto sobre a circulação lícita das substâncias outrora criminalizadas ser diretamente direcionado a grupos e territórios atingidos pela “guerra às drogas”. Tendo em vista que, é uma fonte de receitas nova ao Estado, que não irá constar no orçamento do próximo ano, por exemplo, seu direcionamento a esses grupos em nada afetaria a saúde das finanças públicas. Dentre todas as propostas em construção, essa seria a de mais fácil implementação, a medida claro que tenhamos um mercado lícito dessas substâncias.

Além do investimento em pessoas atingidas, o debate quanto à reparação pelos danos causados pela dita guerra tem que alcançar também os territórios onde essa guerra se executa. Não é por acaso que os últimos seis piores IDH’s da cidade do Rio de Janeiro são territórios de favelas. E os 15 primeiros são da Zona Sul, com exceção de Maracanã e Barra da Tijuca.

A guerra às drogas inviabiliza a plena execução da vida nesses locais. Seja pelas escolas sem aulas ou com índice do IDEB prejudicado, clínicas da família com atendimento suspenso ou comércio fechado, tudo isso gera impacto direta na dinâmica e nas possibilidades do local, fazendo com que, a médio e longo prazo, viver ali gere menos oportunidades e possibilidades.

Fala-se de cannabis pois é a primeira substância, dentre as criminalizadas, a ter seu debate e legalização ampliado de maneira eficiente. Diversos estados estadunidenses já legalizaram seu consumo, tal qual países como Holanda e Uruguai. Assim sendo, o avanço no debate e medidas da legalização traz, a reboque, o avanço em políticas de reparação vinculada a essa substância.

Entretanto, fato é que, todo o abordado referente a cannabis é, e deve ser, aplicado às demais substâncias criminalizadas e proscritas pelos órgãos governamentais. A construção de uma política antiproibicionista é urgente, debater a reparação aos atingidos pelo proibicionismo também.

Portanto, qualquer debate antiproibicionista passa pela centralidade da reparação histórica do povo negro.

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