
Por Fransérgio Goulart e Giselle Florentino
Em nome da Lei e da Ordem, o Estado tem exercido políticas de controle e vigilância, sempre a partir do ordenamento jurídico que define a ilegalidade e legalidade. Partindo desta questão, buscamos fomentar uma reflexão sobre a pandemia de Covid-19 e sua relação com o aumento do controle de corpos, que dada a urgência da conjuntura de manutenção do isolamento social, também potencializa os processos que estigmatização e discriminação da população pobre e negra periférica.

Atualmente estamos em estado de calamidade pública no Rio de Janeiro, definido pelo Decreto 7.257/2010 e consiste em “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido”. No contexto do Covid-19, tal decreto possibilita aumentar os gastos do Estado e a dispensa de processos licitatórios para garantir a rapidez no combate ao novo coronavírus e dar suporte à economia em um período atípico.
Ressalta-se que o dispositivo de estado de defesa seria o mecanismo elencado pela Constituição da República como pertencente ao sistema constitucional de crises. Trata-se de um conjunto de medidas que objetivam conter ameaças à ordem pública ou à paz social. Diante de tal situação, ao Estado é permitido atuar com maior poder repressivo.
No contexto de pandemia, o Estado fica autorizado a adotar medidas coercitivas nos limites da lei, que, em situação de normalidade, violariam os direitos do cidadão. Essas medidas estão expressamente previstas na Constituição Federal, são elas: restrições aos direitos de reunião, ainda que exercido em associações, de sigilo de correspondência e de sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, entre outros.
Por isso, destacamos duas questões concretas geradas pela necessidade do isolamento social: o monitoramento de dados vias plataformas digitais por parte do Estado e o Decreto nº 47.102 do Governo Witzel quando versa sobre a função das polícias na manutenção da quarentena.
Logo, em nome da dita legalidade o Estado pode utilizar tecnologias de monitoramento e controle de deslocamento e hábitos sociais até mesmo a criminalização de pessoas que estão descumprindo as orientações do isolamento social. Essa vigilância é intensificada em territórios predominantemente negro, pobre, favelado e periférico.
“Em uma sociedade que o Estado possui um caráter punitivista e acima de tudo racista, quaisquer ferramentas de monitoramento e controle pode servir para potencializar a criminalização sobre corpos negros, pobres e periféricos.”
(Fransérgio Goulart e Giselle Florentino)
Não podemos abrir mão de assegurar a proteção da privacidade e a segurança de dados pessoais para todos e todas. Sendo urgente garantir mecanismos de transparência da gestão e protocolos de utilização dos dados e informações pessoais. Afinal, tais dados poderão ser utilizados em eventuais ferramentas de controle e monitoramento do isolamento social dos cidadãos durante a pandemia e também para outras finalidades no pós-pandemia. Portanto, temos que assegurar o respeito aos princípios de proteção de dados, como dispostos na Lei Geral de Proteção de Dados.
Vale afirmar, que enquanto IDMJR, somos completamente favoráveis ao isolamento social. Entretanto, sob o argumento do contexto de quarentena, não podemos aceitar ações que instrumentalizem o controle e vigilância do Estado. Pois, sabemos que a lógica punitivista apenas serve para o controle do povo negro, pobre e periférico.
Em uma sociedade que o Estado possui um caráter punitivista e acima de tudo racista, quaisquer ferramentas de monitoramento e controle pode servir para potencializar a criminalização sobre corpos negros, pobres e periféricos. Como o caso do Decreto nº 47.102, assinado hoje, 01/06/2020 pelo Governador Wilson Witzel, o trecho que trata das polícias possui a seguinte redação:
§2º – As forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro deverão atuar para manter o cumprimento das disposições do presente Decreto, sendo certo que para tal fim, poderão fotografar e filmar todos aqueles que descumprirem as medidas previstas no presente artigo, a fim de instruir ato de comunicação ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, sem prejuízo da instauração de procedimento investigatório para apurar a ocorrência de crime e infração administrativa. A administração Pública deverá assegurar o sigilo das informações. Dessa forma, fica vedada a divulgação de fotografia e filmagem.
Ademais, todo o ordenamento jurídico é constituído para garantir o caráter de legitimação das ações do Estado. Logo, o debate de legalidade/ilegalidade perpassa a esfera ideológica. Entendemos o Estado como uma máquina de violações marcada pela luta de classe e não como uma instância que paira acima da sociedade destituído de qualquer interesse ou motivação.
Pelo contrário, o Estado se forja e se consolida para garantia e proteção do direito inviolável da propriedade privada. É um equívoco acreditar que o Estado está direcionado para garantia de bens sociais e defesa dos interesses da sociedade. O Estado propicia a defesa exclusivamente dos interesses privados e das frações de classe que compõe o bloco no poder do comando da máquina pública. Ou seja, a defesa dos interesses das parcelas que possuem poder político para garantir a incidência dentro da estrutura, de parcelas que realmente impactam politicamente nas diretrizes do governo.
Está em curso aplicação de um projeto de sociedade conservador, ultraneoliberal, racista e fascista que utiliza-se de todos os instrumentos jurídicos possíveis, mesmo em um contexto de pandemia mundial, para criminalizar e encarcerar a população preta, pobre, periférica e favelada. A contínua defesa de uma lógica punitivista nesta sociedade tem apenas gerado novas formas de controle e monitoramento de corpos. E como dizia uma célebre frase de Juvenal, poeta latino do século II: “Quem há de vigiar os próprios vigilantes?”
Será que não conseguimos pensar na construção de uma sociabilidade que não perpasse a incessante vigilância e o punitivismo em nossos próprios corpos?
PARABÉNS à Fransergio e Giselle!!!
Além da qualidade da análise, a demonstraçao de que estão acompanhando o desenrolar da política genocida de Witzel. Éo preciso estar atentxs e fortes!