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Por Nívia Raposo


O Estado e seus aparatos de segurança conseguem adoecer as mães e familiares antes, durante e após a perda dos seus entes. No dia do enterro ouvimos lamentações e condolências. Porém, em meio a tantas dores, quase não ouvimos as palavras de afeto.  Seguimos o cortejo com o coração partido e em frangalhos.  Estamos sofrendo a dor da perda. Essa dor é invisível, mas nos consome de um jeito que “só quem perde sabe “ (frase muito repetida por quem perde um ente querido).

Sabemos que aquele local será palco de choro e de mais lamentações. Também teremos a certeza que ali ouviremos gritos de dor e raiva. Serão dias, semanas, meses de sofrimento ao visitar aquele lugar frio. E ao final de três anos, os familiares já começam o sofrimento por antecedência, com a chegada da hora da exumação. Até chegar a hora da exumação, os familiares passam por um misto de sentimentos. Sendo o maior deles a sensação de solidão.

Ao passar por essa nova dor é possível perceber como o Estado viola nossos corpos mais profundamente do que possamos compreender.  O exemplo mais claro que percebemos é notar que alguns familiares, já demonstram preocupação por não ter o valor (recurso financeiro) pedido no cemitério, ou seja, o capital lucra até após a morte.

Os familiares não recebem nenhuma orientação sobre os procedimentos burocráticos, se há gratuidade, mas o que consome e  precisam se preocupar é com a manutenção dos restos mortais, (muitas vezes recebidas em sacos de lixo) que serão realocadas para pequenas caixas plásticas pois entendemos que ali pode conter “provas” para tentar responsabilizar o Estado pela produção de morte, pois caso não consigam esse direito de exumar, os restos mortais de seus entes podem ser incinerados. A maioria das mães e dos familiares passam por essas dores sozinhas. É um momento muito duro. E a sensação de um novo velório.

Nesse sentido, conversamos com quem passou e quem se prepara para passar novamente por essa dor.  Perguntamos para a  Silvania Azevedo , (carinhosamente conhecida como Nem), familiar de Renato Azevedo, que já fez a tempos  a exumação de seu irmão, sobre essa nova etapa de dor. Silvania comenta como é horrível todo o processo de exumação, que devemos já nos preparar para um novo enterro, pois essa foi a sua percepção.

No caso de Silvânia, o corpo do seu irmão foi colocado no jazigo da família da madrinha. Depois de três anos, com a exumação a madrinha, colocou os ossos numa caixinha e os colocou no ossário. Silvania diz que é horrível e que é muito triste. Teve um sentimento de ponto final. Silvania comenta que se sentiu no fundo do poço e deixa uma mensagem de muita força para quem passa e passará por esse momento, e comenta que o Estado só a deixa mais indignada com tanta violência.  

Quem também explicou esse processo tão sofrido foi Ana Paula Ambrósio, mãe de Fernando Ambrósio que fez a exumação do filho mais recentemente e que faz coro comigo, que farei novamente a exumação de meu filho Rodrigo Tavares, afirmando as dificuldades nos territórios de Baixada, piorando com pandemia e quantitativos de morte.

Paula comenta que acabou de fazer a exumação de seu filho e que o trocou de gaveta, repetindo como é horrível e que dói demais toda essa situação. Tentou comprar um jazigo, mas que estão suspensas as vendas de jazigos ou um pedaço de terra para manter os restos mortais de seu filho. Ficou com a preocupação de sumirem com o filho. Mas, que deixou avisado para não desaparecerem com o filho.  Explica o quanto é horrível reviver tudo novamente. Todo o processo é doloroso, sentiu uma dor que pensou não acabar nunca. Tudo muito desagradável, muito ruim.

Diz que é muito triste essa realidade que vivemos. Passou muito mal junto com Paloma, outra familiar que a acompanhou. Ficou com muita dor de cabeça, sem conseguir se alimentar e com dificuldade para dormir, pois lembrava o tempo todo daquela  imagem. Ela entende que o Estado não liga para os familiares e comenta que o Estado “caga e anda para a gente”. Percebe que a cada dia mais familiares vão sofrer o mesmo que nós, devido ao quantitativo de jovens  mortos pelo Estado. Isso causa preocupação e dá uma certa agonia. 

Comigo a sensação não foi diferente dos outros familiares. Mesmo sabendo do prazo de 3 anos, não sabia os procedimentos para fazer exumação. Entendi ao conversar com o setor administrativo do cemitério e a única lógica era o dinheiro. Fui avisada da exumação no dia que faria as fotos de minha formatura na Universidade.

Somente eu e meu filho caçula sabíamos da situação. Nesse dia, que era para ser feliz, mantive um personagem de estudante feliz, enquanto as horas passavam o desespero tomava conta por medo de não chegar a tempo para manter os restos mortais de meu filho. Lembro que Thiago só tinha medo de perder o irmão novamente. Chegamos ao final da tarde no cemitério, mas conseguimos falar com o responsável. Naquela noite sonhei onde estava Rodrigo, parecia que enxergava através dos olhos dele.

Fiquei ansiosa e chegamos cedinho no cemitério. Eu fui acompanhada de minha irmã, que era madrinha do Rodrigo. Minha irmã só chorava o tempo todo. Eu estava me preparando  para essa situação. Mas é muito doloroso todo o processo. Tudo muito duro e frio. Mesmo acompanhada, a sensação de se estar sozinha fica evidente. Comentei com um rapaz onde meu filho estava e ele ficou impressionado. Eu disse que tinha sonhado. Acredito que meu filho me mostrou onde estava.

Sinto que o cordão umbilical não foi cortado de vez. O trouxeram num saco de lixo preto. Eu já sabia que estava ali. Durante o novo sepultamento, minha irmã chorava copiosamente e eu mantinha um misto de raiva, impotência e dor. Reviver o sepultamento conseguiu ser mais doloroso que o dia do enterro. Talvez, porque no dia do enterro o choque me manteve anestesiada. Ali meu filho foi colocado numa caixinha.

Um rapaz com quase 1,80m de altura, coube numa pequena caixa. Naquele momento, notei que fizemos o processo de reconhecimento tal qual no IML e depois  (re)enterramos nossos entes em caixas menores. Outra coisa que percebi foi que meu filho recebeu um novo número. E agora ocupava uma gaveta. Tudo que alguns familiares fazem quando vão enterrar, o fazem novamente quando vamos exumar. É necessário muita força. Sobretudo, muita coragem para todas mães e familiares que passarão por mais essa produção de dor. Um abraço caloroso e fraterno a todos.

É importante salientar que apesar de todas as dificuldades para realizar as exumações, para os familiares, esse é um momento que precisamos da empatia das instituições, da sociedade e do poder público. Sabemos que essas dores se acumulam e nos adoecem e entendemos que o Estado age dessa forma de maneira proposital. Quando o Estado não mata, nos encarceram em prisões  e nas nossas dores e sofrimentos. 


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