
Por Fransérgio Goulart e Giselle Florentino
Antes de pensar na construção de políticas populares em territórios dominados por milícias, como a Baixada Fluminense, primeiro precisamos estabelecer uma discussão sobre o que entendemos como Estado e política pública.
A IDMJR comunga de uma teoria radical do Estado, temos lado político bem estabelecido na defesa intransigente dos anseios de emancipação social da classe trabalhadora. Temos classe, gênero, território e raça bem definidos e são norteadores da construção e execução do nosso projeto político popular antirracista, feminista e anticapitalista.
Precisamos entender que o Estado Moderno é uma máquina de violações marcada pela luta de classes, pelas incessantes disputas internas de distintas frações de classe que tentam dar o tom do andamento da máquina pública.

Neste caso, ressaltamos que o dito “público” não representa o todo da sociedade. E sim, as parcelas que possuem poder político para garantir a incidência dentro da estrutura, de parcelas que realmente impactam politicamente nas diretrizes do governo. O Estado não é uma instituição deliberativa que paira pela sociedade, destituído de quaisquer interesses ou motivações. O Estado se forja e se consolida para garantia e proteção do direito inviolável da propriedade privada, nunca foi para garantia de bens sociais e defesa dos interesses da sociedade. Em que Engels (1884) consolida a tese de que a principal política pública do Estado Liberal é “a preservação da propriedade”.
Poulantzas (1978) mostra que o Estado é uma forma de moderar a luta entre as classes antagônicas, garantindo a conservação da própria dominação de uma classe sob a outra. Observando o Estado dessa forma, fica evidente que não podemos conceber as políticas públicas, simplesmente, como formas de corrigir os “deslizes” do capitalismo ou acreditar que a implementação de políticas sociais universalizantes podem transformar a estrutura deste modo de produção de vida menos assassino e desigual.
As políticas públicas, no seu cerne, não são resultado apenas da intenção dos movimentos da classe trabalhadora, pois não deixam também de estruturar a própria lógica de acumulação capitalista. Como por exemplo, a questão da monetarização das políticas sociais, em que o Estado passa para a iniciativa privada a função de fornecer direitos sociais básicos. Em que fica na esfera do capital, principalmente do circuito financeiro, o acesso a políticas sociais. Há alguns casos emblemáticos de Privatização das Políticas Sociais, o incentivo ao ProUni ao invés do fortalecimento da Universidade Pública, gratuita e de qualidade. O caso dos Planos de Saúde e o processo de sucateamento do SUS. Bem como, a concessão para grandes cartéis a responsabilidade de fornecer o Transporte Urbano.
Por isso, quando as políticas públicas são colocadas como exclusivamente um mecanismo de promover igualdade para todos é tentar imputar a humanização de um sistema de modo de produção de vida programado para gerar miséria.
Na Baixada a organização das políticas públicas sempre estiveram mediadas pela colonização, antes dos coronéis, posteriormente dos militares e atualmente dos milicianos.
É inegável que o Brasil é historicamente forjado por inúmeras violações, que são atualizadas a cada tempo histórico, porém é importante ressaltar que as instituições do Estado são organizadoras de metodologias para que essas violações aconteçam de forma naturalizada.
A condição das populações negras nas favelas e subúrbios essa a ideia de direitos é algo fora da vida cotidiana, uma esfera quase inalcançável devido às demandas da vida prática e material.
Um exemplo, que ilustra um momento do vasto processo de negação/não acesso aos direitos sociais na Baixada, é observar a funcionalidade dos aparelhos públicos. Hospitais, centros de atendimento jurídicos, fóruns, delegacias são apontados como espaço de maior sofrimento psíquico nas formas de atendimento à população.
Os espaços públicos, praças, feiras, ruas são abandonados nos serviços de estrutura e manutenção. Aparelhos culturais, escolas públicas e centros comunitários existem no limite mínimo de condição de atuação e na maioria dos casos são localizados apenas nos centros comerciais. Esse cenário nos faz refletir sobre quais são as ações pensadas pelo Estado para a Baixada Fluminense.
A política de Educação não possibilita emancipação pela precariedade e pela lógica mercantil, as políticas de cultura e lazer não chegam em territórios favelados e periféricos, a assistência social é completamente sucateada e no que tange a política de segurança pública para territórios predominantemente negros a escolha política do Estado é executar uma política de confronto, com conflitos armados em ruas e vielas.
A ausência de execução de políticas públicas também é uma opção política do Estado, não é um equívoco, um erro ou algo aleatório. Por exemplo, a política de segurança pública da Baixada Fluminense é a da Milicialização. As milícias agem com o véu da legalidade do Estado e aproveitam da legislação que legitima e isenta o abuso policial, bem como, do aparato da segurança pública para lucrar, dominar, assassinar e violar corpos, em sua maioria pretos. E, ainda utilizam poderio simbólico e material da Polícia para garantir a impunidade.
E como diante deste cenário, acreditar ser possível construir política pública em territórios dominados pelas milícias sem ter relações diretas com os próprios grupos políticos corruptos e milicianos é pura ingenuidade. Já que as distintas frações de milícias ocupam o legislativo, o judiciário e o executivo em todos os municípios da Baixada Fluminense.
Entendemos a milícia não como um único grupo homogêneo, pelo contrário, há diferentes frações de poder que disputam territórios que são altamente rentáveis. Em áreas comandadas pela milícia a distribuição dos apartamentos do Minha Casa e Minha Vida, fornecimento de gás, TV, comércios, estacionamento e a dita segurança privada do território são executadas por diferentes frações de milícias que disputam o controle político do território.
Tornando esses territórios mais um espaço de alavanca de acumulação de lucros, já que esses serviços anteriormente não eram cobrados para essa população.Pois, além da extorsão de comerciantes e a prestação do serviço de agiotagem, os grupos exploram o sinal de TV e internet clandestina, transporte alternativo e até mesmo o controle de equipamentos de serviços públicos como assistência social, habitação e saúde.
Estamos em um cenário de consolidação da milícia como um projeto político do Estado para áreas suburbanas, faveladas e periféricas. O controle da gestão e organização de políticas sociais nesses territórios predominantemente de negros e pobres são administrados por essas organizações políticas que estão no interior do Estado.
Logo, a participação da sociedade civil em planos municipais de políticas públicas e os espaços de participação de controle social divide o espaço com lideranças de frações de milícias e grupos de extermínio.
Você acha responsável, sentarmos em espaços que esses grupos milicianos estão e fazem parte para discutirmos planos municipais e em espaços como conselhos comunitários para debater questões de segurança pública na Baixada Fluminense?
Lembremos que o Brasil é o país da América Latina onde defensores e defensoras de direitos humanos são mais ameaçados e assassinados e infelizmente a cultura de proteção ainda é um desafio para a nossa sociedade.
Participação popular nos Conselhos Comunitários é uma saída?
A IDMJR acredita na construção de “política do P maiúsculo”, por isso estabelecemos cotidianamente o diálogo com os nossos/as nos territórios para construção de um projeto político emancipatório e autônomo, onde nós seremos os protagonistas. Evidente que um projeto político como esse, a construção será no longo prazo. Porém, assistimos com pesar que movimentos sociais e até mesmo parte das organizações de direitos humanos e do campo de esquerda preferem priorizar a construção política por visibilidade e disputa de micropoder na esteira da política pública.
Um tipo de construção que não toca na necessidade de alterações estruturais e que são rapidamente cooptadas pelos intentos do neoliberalismo e conservadorismo. Sem contar, na exposição e vulnerabilização de corpos historicamente oprimidos frente a máquina de violar direitos, chamada Estado.
Modelos de construção de planos municipais em territórios dominados pelas milícias não fazem sentido, pois só expõem e vulnerabilizam a militância e os movimentos e Organizações Sociais e as ações propostas apenas serão efetuadas, caso as próprias frações de milícias e grupos de extermínio que comandam o Estado derem a autorização.
Segundo levantamentos da própria IDMJR, milicianos são os principais gestores de políticas públicas de habitação, saúde e assistência social na Baixada Fluminense.
São milicianos que escolhem/selecionam quem irá fazer parte da equipe de saúde da família e membros de outras equipes de políticas sociais territorializadas, bem como, a implementação das diretrizes políticas das Secretarias Municipais.
Nesse cenário de intensa violência, jovens negros são mortos diariamente. O racismo institucional opera eliminando física e simbolicamente a população negra no dia a dia. Porém, mesmo com a apresentação de dados e análises sobre o fenômeno, violência e injustiças raciais, em geral, há pouca sensibilização à sociedade.
Diante desse cenário, entendemos a necessidade de apontar o Estado como responsável pela brutal violência urbana. A luta por direitos sociais e promoção da cidadania esbarra sempre na barreira estatal que nitidamente não tem o menor interesse em assegurar que a teoria legislativa seja efetivada na prática de vida da grande população.
E, por isso, não é através exclusivamente de criação de políticas públicas que o problema de segurança pública será resolvido, haja vista a íntima relação entre as organizações que comandam a violência urbana e a estrutura interna dos Estados.
Produção de resistência popular em territórios de domínios de milícias
Acreditamos na construção de dispositivos de memórias e legados das nossas resistências, bem como, na articulação com atores estratégicos e utilizando-se da Branquitude para que essa possamos colocar seus corpos brancos privilegiados na contenção desse projeto político de milicialização visando obviamente um outro horizonte de emancipação humana, completamente fora dos marcos do capital.
Por isso, a IDMJR fomenta ações de tentativas de redução de danos e articulações estratégicas para minorar a violência cotidiana promovida pelo Estado em áreas favelas e periféricas. Um exemplo é a ADPF 635, uma política do constrangimento e controle da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que a IDMJR fez história ao chegar ao Supremo Tribunal Federal como Amicus Curiae, como a primeira organização da Baixada a chegar ao STF na discussão de política de segurança pública, não sozinha, mas com uma mega articulação de organizações e movimentos sociais.
Outra experiência é a construção de relatórios de denúncias e envio para sistemas internacionais de garantia de direitos como o Sistema Interamericano/CIDH e da ONU. Assim como, o fomento de uma Articulação Estadual de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos. Afinal, é essencial minimizar ameaças frente a essa conjuntura política tão adversa, sempre prezando o cuidado e proteção na construção de mobilização, incidência política e intervenções políticas no território.
Já que a organização dos movimentos sociais com as redes de atuação para o enfrentamento à política de morte, cria distintos métodos de resistência para a defesa da vida.Outro dado importante é perceber que a organização coletiva da sociedade civil tem sido a política da vida cotidiana, que garante na urgência das relações, a manutenção de condições básicas de sobrevivência e a construção de defesas e proteção frente aos ataques do próprio sistema de opressão.