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Por Monique Rodrigues e Giselle Florentino



A história da Baixada Fluminense é atravessada pela ideia de que esses municípios são abandonados e negligenciados, tendo uma população sem identidade coletiva, porém quando analisamos os processos de apagamento que a baixada sofreu percebemos que essa narrativa foi estruturada para o não pertencimento, sendo essas características pejorativas parte de uma produção sistematizada pelo Estado. 

Uma das resistências mais fortes que se tem notícia, vem pela formação quilombola da Hidra de Iguassú, sendo uma analogia à mitologia da Hidra de Lerna, a serpente de muitas cabeças, esse quilombo foi uma sociabilidade fundamental para as terras deste lado de cá da Guanabara, instaurando o enfrentamento ao Estado escravagista e definindo a autonomia de uma geração de negros fugidos e indígenas destribalizados.

As áreas comandadas pela Hidra de Iguassu fundaram a região da baixada fluminense, que desde sua origem é um território marcado pela resistência e por lutas contra as violações do Estado, durante seus quase 100 anos de existência a Hidra foi configurada como o principal problema de segurança pública para o governo brasileiro devido a dificuldade de captura e subjugação deste aquilombamento.

Por isso, torna-se muito importante recontar a história da resistência por meio dos quilombos, sobretudo a resistência das mulheres negras que defendem cotidianamente a vida dentro dos seus territórios periféricos. Ressalta-se que a fundação do território da Baixada Fluminense foi protagonizada pela intensa luta de resistência dos quilombos que cotidianamente enfrentam o braço armado do Estado e conquistaram sucessivas vitórias. 

Alguns dados são importantíssimos para compreendermos a atuação da presença negro-africana, e posteriormente, afro brasileira. Por exemplo, segundo registros populacionais entre 1779 e 1789 a população da região era de 13054 habitantes, dos quais 7122 eram escravos, cerca de 55% da população da região, que posteriormente ficaria conhecida como Baixada Fluminense, era composta por escravizados.

Ademais, conforme registros do Calabouço para o ano de 1826, do total de 469 escravos presos fugidos e quilombolas no interior da província do Rio de Janeiro, 121 tinham sido capturados nas cinco freguesias que compunham a grande região de Iguaçu.

Essas informações fazem parte de um livro chamado “Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX” de Flávio dos Santos Gomes e vai trazer uma série de apontamentos históricos sobre a maneira como os quilombolas organizaram uma sociedade independente, autônoma e produtiva durante quase 100 anos, enfrentando principalmente as investidas policiais, marcadas por incontáveis violências, que tentavam pôr fim ao quilombo Hidra.

Outro ponto significativo da análise é perceber a lucratividade oriunda do trabalho desses mocambos e como a cultura escravagista foi forjada em uma lógica de rentabilidade pela exploração como moeda de troca para a liberdade de escravizados fugidos, e negociações constantes para a manutenção desta liberdade.

Sendo assim, é fundamental pensar a existência da Baixada Fluminense como lugar de estratégias onde lados antagônicos estão em constante disputa de poder. 

A organização quilombola é um grande exemplo para pensarmos a prática do que chamamos de diáspora brasileira, ou seja, a reinvenção de negros, africanos e povos não brancos que formam o Brasil, do pós colonização. Esses povos conseguiram resistir ao Estado violento de produção do extermínio passando de geração em geração metodologias de inteligência cotidiana, que são desde pensar o local onde construíram suas moradias, passando pela constante produção agrícola e de insumos, até as estratégias de guerra, e nesse ponto, a presença indígena também ensina as práticas que potencializaram a resistência.  

A Hidra de Iguassú é uma experiência coletiva que resulta em muitos herdeiros na baixada, pois espalhados por uma extensão enorme de terra, proporcionou o legado da diáspora, evidentemente o Estado conseguiu apagar parte significativa dessas memórias, porém ainda hoje, essas narrativas resistem.

Narrar acontecimentos sobre a Hidra de Iguassú é religar a ação e sobrevivência da classe trabalhadora na Baixada Fluminense, que é majoritariamente negra, com um quantitativo grande de mulheres negras, que fazem da vida cotidiana um enfrentamento constante, com as práticas de resistência e inventividade criadas durante 1 século de vida desse importante quilombo.

Finalizando esse texto, reproduzimos um trecho de uma carta que o então Ministro da Justiça, Francisco Januário da Gama Cerqueira, enviou ao Império relatando o pensamento e a metodologia que seriam aplicados pela polícia em uma das tentativas de extermínio do Quilombo Hidra de Iguassú.

“Na esfera da atividade da polícia nem sempre é possível proceder de modo irrepreensível perante a lei. Há casos policiais em que os fins justificam os meios. É um deles a extinção do quilombo de que se trata e que com efeito por muito tempo existiu em detrimento dos créditos da polícia. Os meios empregados para suprimir esse valhacouto de ladrões, constante ameaça contra lavradores da circunvizinhança, não são dos mais confessáveis, mas surtiram excelente efeito. Igual não resultaria de mais regulares.” (GOMES, 2006, p.115)

Por fim, o Direito como experiência ainda é uma relação não concebida, inacabada e constantemente ameaçada pela branquitude na manutenção dos seus privilégios. Podemos apontar, por exemplo,  a da Lei nº. 12.288/2010, que instaura inúmeras metodologias de reparação das desigualdades oriundas da escravidão, na tentativa de garantir acesso à direitos para as vivência negra no Brasil como uma política de direitos, é constantemente burlada, não realizada ou criminalizada, incorrendo nas mais diferentes narrativas sobre o que é o conceito do Direito e quais pessoas podem reivindicar essa condição.

O Estado Brasileiro no seu processo histórico organizou o campo do direito por meio das relações do capital, que a escravidão negra instaurou como modus operandi indissociável a violência racial. 

A história da resistência negra nos possibilita pensar maneiras de reorganizar o enfrentamento à violência de Estado promovida nesses territórios na atualidade, já que a luta contra as violações do Estado sempre foram centrais para a sobrevivência do povo negro na Baixada Fluminense.

Analisar a história por meio das experiências vividas por mulheres negras redimensiona o debate e a percepção sobre o protagonismo das mulheres negras na ação cotidiana. Todas as formas de violências objetivas e simbólicas, que estamos sujeitas, estão estruturalmente organizadas porém no curso da história as insurreições aconteceram sempre para mostrar que temos sim a capacidade de organização e principalmente para além das estruturas do Estado.


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