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Por Monique Rodrigues


Como apreendemos a vida na eterna vigilância dos corpos?

A escravidão produziu no Brasil fenômenos muito específicos de dominação, que desencadearam em ações de violência, abuso, exploração e tragédias, e no trânsito dinâmico da história foram acoplados aos comportamentos institucionais e cotidianos, construindo um sentido de sistema punitivo, que encontra na vigilância uma das metodologias mais eficazes.

No complexo debate da historiografia, como pensar essas estruturas exploratórias por meio da vigilância dos corpos, que na escravidão foi definidora das hierarquias, alicerçando funções de trabalho, inicialmente como os feitores e capatazes, nos períodos seguintes torna-se o trabalho da Guarda Nacional, posteriormente Polícia Militar, e seguindo a atualização dos sistemas escravagistas / capitalistas estrutura-se nos modelos do que temos na ideia atual de Segurança Pública, e segue cumprindo sua função de limpeza étnica e genocída. 

Os drones, os micro ônibus de videomonitoramento, o mapeamento genético, a militarização da educação, e consequentemente da vida, são instrumentos do Estado, vigilante e punitivo, para monitorar o cotidiano das pessoas, que perdem o exercício da liberdade pessoal, em prol de uma sensação de proteção, que em uma análise mais profunda, escolhe uma elite social, seus bens e patrimônios, para proteger, e o restante da população para disciplinar.  

Mas será que esse estado de eterna vigilância funciona como ação preventiva ou como atualização da estrutura racista e classista que vem atravessando a invenção do imaginário colonial na sua política de instauração da supremacia branca?

A forma como as estruturas socioeconômicas se organizam para a manutenção dos estados de exclusão, que o sistema escravista definiu, e intrínseco ao capitalismo, na lógica da acumulação de renda, na descartabilidade dos corpos negros, aponta para as periferias como os territórios onde as violações são permitidas, porque a priori as populações subalternizadas são tipificadas como alvo, mostra que a organização do Estado por meio da patrulha só adensa e legitima a violência que vitimiza, por exemplo, 1 jovem negro a cada 23 minutos.

Os sujeitos negros, periféricos, pobres que formam maior parte do contingente de pessoas que circulam na baixada fluminense estão expostos à todo tipo de precarização das condições básicas. O abastecimento de água, debate que está fervilhando nas redes sociais por conta da pandemia do coronavírus, na maior parte dos bairros dos municípios na baixada não funciona desde sempre, como no bairro da Palhada em Nova Iguaçu que moradores têm água 1 vez na semana. As redes de ensino pública são precárias em todas as condições, e uma parcela absurda de crianças e adolescentes em idade escolar, estão fora da escola. O saneamento básico nunca aconteceu, com ruas de esgoto à céu aberto, onde vemos a infância e a velhice convivem com todo tipo de doença, os surtos de epidemias são constantes, desde o sarampo até a dengue. Quem dirá como estarão essas populações diante o coronavírus? Quais medidas de precaução estão sendo destinadas aos bairros mais carentes dentro da Baixada Fluminense, onde majoritariamente se vê pessoas negras morando?

Nesse cenário a vida que se desenha como ciclo constante de ausências, o Estado é invisível na sua presença enquanto agente responsável pelo tão sonhado estado de bem estar social, mas é absolutamente presente no contexto da vigilância, violência e manutenção do medo. Visto que são nesses espaços que chacinas acontecem quase que diariamente sem que ninguém saiba, ou quase ninguém.

A vigilância como metodologia de dominação é eficaz e reproduz o pensamento dos traficantes de escravos que aglomeravam pessoas nos navios tumbeiros, também, com a ideia de contê-los durante a travessia, ganha ares de status no cotidiano das fazendas escravocratas diante da figura dos fazendeiros, que hierarquizaram a vigilância impondo a tortura como ação principal, e eram louvados pela branquitude por sua capacidade de “manter os negros cativos”[1] reorganiza-se na falsa república com das forças militares atuando como a avaliadora da moral e bons costumes, ressalta-se sobretudo a Lei da Vadiagem (1942), para criminalizar a cultura negra e engendrar o racismo cultural para todas as expressões afro diaspóricas, ganha sua maior potência durante a ditadura civil militar, que dura tenebrosos 21 anos e sistematiza a política de morte do Estado, e atualmente encontra espaço fértil na sociedade do controle.

Toda essa tragédia histórica tem como finalidade a morte do corpo negro, que funciona muito bem arquitetada pela elite branca brasileira, entretanto temos um desafio mais difícil nesse processo, que se dá pela via da ação cotidiana. Seremos capazes de romper com a noção de Estado e produzir significantes diante nossas próprias referências e resistências?

Com a estatização de frações de milícia na baixada fluminense teremos a possibilidade de reorganizar a percepção das necessidades da vida ou nos acostumaremos com o monitoramento cotidiano dos nossos corpo?


[1] Termo usado no cotidiano para designar a maneira como a população escravizada era mantida sob dominação colonial.

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