0 16 min 4 anos

Por Monique Rodrigues

A necessidade da organização e articulação entre as demandas de classe, gênero e raça são urgentes no Brasil. Ainda sobre as reflexões e debates em torno da pergunta: Policial é classe trabalhadora? A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial escutou a advogada, pesquisadora e militante negra comunista Rhaysa Ruas que traçou um panorama sobre esse debate, alinhando a construção histórica da classes trabalhadora com a função social da polícia no curso das lutas sociais. Dado o alto nível de domínio político e teórico, optamos por reproduzir na íntegra a entrevista. Confira abaixo o instigante debate desenvolvido pela Rhaysa Ruas.

“Acho que essa pergunta só pode ser respondida no tempo e no espaço, policial hoje no Rio de Janeiro não é classe trabalhadora. Definitivamente. Acho que a primeira resposta é essa, depois a gente pode ver o porquê. Mas, eu acho importante também falar do espaço e do tempo porque a gente não pode essencializar nada, acho que é uma tarefa nossa enquanto militantes, marxistas, entender que nada é estático na sociedade que a gente vive. Não é hoje, na conjuntura atual, não é historicamente pensando o que é polícia no Rio de Janeiro e no Brasil né, mas essas determinações estão para além da gente, quando a gente nasceu essas determinações já estavam lá.

Quando a gente nasceu já tinha uma polícia racista, forjada lá na escravidão para perseguir escravo que, ou tentasse fugir ou não se adaptasse a disciplina do trabalho escravo, sequestro ou toda violência que nosso povo passou. Essa polícia racista e genocida é uma determinação muito forte da sociedade que a gente se encontra mas também por outro lado tem a nossa agência, e aí, que não é só nós militantes, mas também daquelas pessoas que estão na corporação, enquanto coletividade.

Se amanhã acontecer um grande ascenso de consciência de classe naquela corporação e os policiais todos se revoltarem e resolver implodir a corporação, a instituição que tá colocada, talvez depois desse processo, eles passem a ser a classe trabalhadora. Mas isso precisa de um longo processo de consciência de classe, de entender a sua posição enquanto braço armado do Estado, de entender a sua ligação ou não com o restante da classe trabalhadora. São vários processos que não acontecem do dia para a noite, que também são processos históricos, que não surgem do nada, seria um pouco idealista pra gente hoje, pensar que amanhã a polícia do Rio de janeiro poderia virar parte da classe trabalhadora. Se isso tivesse acontecendo a gente teria indícios, a gente estaria vendo a polícia tratando as pessoas na favela de uma forma diferente do que trata hoje.

O que vemos é o contrário, é a polícia indo cada vez mais para o extremos da violência, da barbárie e do genocídio. Então hoje não se pode dizer que tem um processo em curso, de que a polícia virando ou se colocando ao lado da classe trabalhadora, por enquanto, a polícia continua sendo o braço armado do estado capitalista, estando lá para matar preto e pobre, e principalmente para disciplinar o tipo de vida que a gente precisa ter nesse sistema”.

“Por enquanto, a polícia continua sendo o braço armado do estado capitalista, estando lá para matar preto e pobre, e principalmente para disciplinar o tipo de vida que a gente precisa ter nesse sistema.”

(Rhaysa Ruas)

A produção de pensamento de Rhaysa Ruas vai de encontro com uma vivência que alinha experiências diversas entre a produção acadêmica e as ações cotidianas de trabalho que impactam a maneira como seus olhares alinham a percepção urgente de uma ação coletiva e revolucionária, que precisa ser feita nas bases sociais, diariamente.

“Sou militante desde o movimento estudantil, sou militante desde antes o trabalho profissional, antes de ser advogada e ter qualquer tipo de ativismo na área dos Direitos Humanos, eu já era militante socialista, militante comunista, então acho que acima de tudo é isso. Sou uma comunista negra e isso pauta muita coisa na minha vida, e se hoje eu sou Advogada /Doutoranda, mais pesquisadora do que advogada, mas ainda advogada popular é porque antes de tudo eu sou uma militante comunista negra.

Meus estudos são pautados pelos estudos marxistas, é uma literatura que existe há 200 anos, de reflexão teórica-prática. Eu não sou a pesquisadora que faz qualquer tipo de análise ou pesquisa teórica, todas elas são práticas, ao mesmo tempo, porque marxismo é  a filosofia da prática, ele só existe enquanto reflexão da nossa ação política, tanto para guiá-la como quanto resultado dela. Não é só um ideal que a gente persegue. 

Acho muito importante a pergunta, se policial é classe trabalhadora, porque ela traz uma pergunta implícita, quem é a classe trabalhadora, que é um modo da gente se reorganizar em pensar nosso projeto político. Então a gente precisa se reconhecer enquanto classe e retomar as rédeas do que significa desempenhar esse papel histórico.

Classe precisa ser entendida nessa perspectiva histórica – materialista e dialética, tentar entender classe como algo que tem uma dimensão subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, eu não posso pensar em classe só como aquele que é assalariado, que faz greve ou que está em uma categoria X, se essa pessoa ou categoria que está fazendo greve não desenvolve uma consciência de classe autorreflexiva que entenda as outras frações de classe como parte da sua classe trabalhadora.

Ao mesmo tempo eu tenho que considerar que essa categoria também está expropriada dos seus meios de produção e subsistência, e em uma dimensão objetiva é parte da classe, então é importante a gente pensar que classe tem esses dois lados em contradição que nem sempre estão alinhados. 

As pessoas estão expropriadas, dependem da venda da sua força de trabalho para sobreviver mas essa é uma dimensão objetiva, material. Em uma dimensão subjetiva, nem todas essas pessoas conseguem se organizar, entender e romper com a alienação para compreender porque isso acontece, qual é o seu papel de classe e romper com essa realidade, e aí é o papel dos militantes, ativistas, de todo debate político que a gente coloca, e tentar romper com esse véu que também nos atinge enquanto militantes”.

“Acho muito importante a pergunta, se policial é classe trabalhadora, porque ela traz uma pergunta implícita, quem é a classe trabalhadora, que é um modo da gente se reorganizar em pensar nosso projeto político”.

(Rhaysa Ruas)

“Por mais que a gente também esteja na luta, reproduzimos várias opressões e hierarquias sociais que estão colocadas antes da gente, mas fazer constantemente o que estamos fazendo, colocar no debate, avançar no nível de pensamento faz com que a classe como um todo avance. 

Historicamente o marxismo pensou classe de uma maneira restrita, então, classe como classe trabalhadora operária industrial, e que tem um movimento desde a década de 60, dentro da tradição marxista, que repensa a classe de uma maneira mais ampla para pensar também todos aqueles que contribuem para a reprodução da vida em sociedade e que estão expropriados do meio de subsistência.

Mulheres que estão em casa fazendo trabalho doméstico, não inseridas em um mercado de trabalho nesse momento, são também classe trabalhadora a partir da medida em que elas estão fazendo um trabalho essencial e proporcionando a produção capitalista, os trabalhadores autônomos, precarizados de algum tipo, todos esses são trabalhadores, e é importante entender classe, como um momento. 

Temos momentos de desemprego, por exemplo, e então momentos de não estar no mercado de trabalho diretamente, todos nós passamos por esses momentos. Momentos em que estamos empregados, com carteira assinada ganhando melhor, e que a gente pode se organizar no sindicato de uma forma mais privilegiada, momentos em que a gente não está com essa condição, principalmente, falando de nós trabalhadores negros.

A nossa condição de vida passa por muitos altos e baixos, mas ela não faz com que a gente esteja fora da classe em nenhum momento. Precisamos atualizar o modo como a gente enxerga nossa posição de classe porque ela é sempre dinâmica, contraditória mas ela sempre tem potencialidade. 

Quando você me pergunta, qual nossa perspectiva de luta, qual o projeto político que tá colocado? Primeiro é conseguir entender as nossas diversas posições e momentos, como classe trabalhadora, individualmente falando porque a partir do indivíduo a gente consegue vê o coletivo, mas tentar ampliar nossa percepção sobre o que é e quem é a classe trabalhadora, e para onde ir. Saber como o trabalho determina nossa vida, e aí, o trabalho não necessariamente, assalariado, é toda atividade transformadora que a gente faz para continuar sobrevivendo, como a gente faz a nossa sobrevivência diária, e são muitos os corres que garantem nossa sobrevivência diária.

Isso determina a nossa vida, nossa existência nessa sociedade, e precisa ser levado em conta quando a gente tá pensando em projeto político. São essas perspectivas de resistência que a gente vai criando que, também, forjam nosso futuro”. 

“A gente precisa destruir o estado capitalista tal qual ele existe, mas também precisamos de organização centralizada pra fazer essa mudança, então é um desafio grande que tá colocado”.

(Rhaysa Ruas)

“Agora em tempos de pandemia é muito importante usar esse período para reflexão, mais profunda, sobre qual é o nosso projeto político, como a gente toca ele a partir de agora. Eu concordo que não tem como a gente reformar o estado capitalista do jeito que ele está, um estado capitalista “melhor” não é, primeiro possível para gente, pode ser possível para uma classe trabalhadora de carteira assinada, sindicaliza que vai ter os seus direitos trabalhistas mas para a maior parte da classe trabalhadora brasileira e global não é possível.

E mesmo que fosse não é o nosso objetivo, porque quando um de nós não está incluído, não tá bom pra gente. Então precisamos de algo que seja para além da reforma do estado, o que não quer dizer que a gente não precise tomar o estado. A gente precisa destruir o estado capitalista tal qual ele existe, mas também precisamos de organização centralizada pra fazer essa mudança, então é um desafio grande que tá colocado”.

O tempo da pandemia mostra isso, mais do que nunca precisavámos do Estado aqui e agora. Para fazer reconversão industrial, para reorganizar a economia no sentido de redistribuir renda, que é na verdade fruto do nosso próprio trabalho investimento nos serviços públicos, isso tudo tá faltando pra gente. Isso não quer dizer que necessitamos do estado capitalista fazer e que isso vai dar uma solução à longo prazo. Pode solucionar o problema do pico da pandemia, agora, se o estado capitalista se voltasse pra isso, e o estado brasileiro é um dos mais resistentes, mas precisamos de muito mais, quando tudo acabar não podemos voltar ao “normal”.

Precisamos dar uma guinada e para isso é fundamental a pergunta que o  IDMJR faz, porque é importante a gente reconhecer quem está do nosso lado hoje, para esse processo de mudança e transformação que a gente precisa agora, e quem ainda não está, a gente precisa avaliar se tem capacidade de estar durante nosso horizonte de luta política.

Não acho que é o caso da polícia do Rio de Janeiro hoje, infelizmente, mas acho que precisamos olhar para outros setores que têm controle da violência e refazer essa pergunta. Como a gente lia com eles também fazendo parte da nossa pergunta, para nosso projeto político, como a gente se articula ou não, e que em um dado processo de transformação a gente não vai ser morto por esses setores em uma primeira investida? Como a gente se organiza e cria estratégias para avançar sobre eles?”


Nesse momento de alto contágio de Covid-19, Rhaysa Ruas indica duas importantes iniciativas que está construindo coletivamente e que estão promovendo ações sobre os impactos da pandemia do Covid-19 na classe trabalhadora dos profissionais essenciais. O portal Esquerda Online que está recendo e sistematizando informações sobre o dia a dia desses profissionais e o coletivo Coletes Rosas que produz informações e orientações sobre violência doméstica. Além do curso online Lendo O Capital na Quarentena organizado por uma equipe de 45 militantes marxistas voluntários pretende estudar a obra de Karl Marx.

Agradecemos a disponibilidade e a gentileza da Rhaysa Ruas em ser entrevistada pela Equipe da IDMJR e tratar de um temática tão urgente para os debates do impacto da violência de Estado em favelas e periferias. Ao longo de todo o mês de maio, a IDMJR publicará textos e entrevistas sobre o debate de violência do estado e classe trabalhadora.

Acesse aqui o texto produzido pelos coordenadores da IDMJR também refletindo sobre esse debate.

Deixe uma resposta