
Por Monique Rodrigues
Os movimentos históricos que possibilitaram a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, movidos por um forte sentimento de mudança nos paradigmas de defesa da vida, não previram a ampla e complexa condição de validação para que esse combinado funcionasse na ação prática do cotidiano, sobretudo nos países onde a exploração humana determina valores sociais, e assim, a mudança imaginada por meio do amplo acesso aos direitos humanos para todas e todos ficaram no papel.
O Brasil ocupa o ranking dos países que mais violam os direitos humanos, aliás, segundo um levantamento de 2019, 10 países que compõem as cadeiras no Conselho de Direitos Humanos da ONU, foram apontados como violadores das determinações que estão no tratado. Práticas de tortura, assassinatos da população negra, LGBTQI e mulheres, trabalho análogo à escravidão, negação aos serviços básico de saúde, saneamento e moradia, são exemplos bem palpáveis do que acontece nas periferias do Brasil e a Baixada Fluminense não foge dessa realidade.

Historicamente a periferia do sistema mundial é o território que sustenta o modelo desenvolvimentista do capitalismo, o tão falado bem estar social dos países europeus. Um exemplo, que ilustra um momento do vasto processo de negação aos direitos na Baixada, são os períodos eleitorais onde as ruas dos bairros mais escassos se tornam palanques para a promoção de um projeto de sociedade que nunca chega.
Esse cenário nos faz refletir sobre quais são as ações pensadas pelo Estado para a Baixada Fluminense, que possam produzir à longo prazo, uma forma de vida menos violenta e sofrida para uma população estimada em 855.046 habitantes?
Diante o avanço da militarização da vida, que utiliza a violência como plataforma financeira e escudo social, os municípios da baixada são fortemente impactados por uma série de violações que não são contabilizadas oficialmente e passam a fazer parte do crescente cenário de invisibilidade do que chamamos de necropolítica.
As narrativas dos moradores são permeadas por violações cotidianas, produzidas pelo Estado, nós da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial convidamos duas mulheres negras, que promovem ações de enfrentamento e reflexões sobre a vida cotidiana na Baixada, para expor suas percepções:
“Ao longo dos meus vinte e quatro anos enquanto moradora da Baixada Fluminense – RJ vi e vivi diversas transformações neste território. Desde mudanças positivas como a inauguração dos Campus de colégios públicos e universidades de tradição e qualidade, como Pedro II e UFRJ e à atuação de diversos movimentos sociais ligados à educação e cultura, quanto o agravamento de um cenário político local cada vez mais distante da defesa do bem-estar social. Mesmo o passado e o presente desses municípios serem marcados pela resistência dos seus habitantes às mais diversas situações, ano após ano o paradigma do desemprego, falta de saneamento básico e moradias estruturadas se mantém.

Constatar essa realidade nos faz questionar os limites de alcance dos direitos humanos. O conjunto de trinta artigos, escritos no século passado, que instituem os direitos básicos de toda pessoa humana, sem distinção alguma de gênero, raça, credo ou qualquer outro fator, no contexto em que vivemos possui critérios “práticos” para sua efetivação. Como falar em direitos humanos na Baixada Fluminense se a garantia dos mesmos está, contraditoriamente, condicionada ao pertencimento racial, status social e de gênero? Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (2018), 101 dos 359 casos de feminicício ou tentativa de feminicídio do estado do RJ ocorreram na Baixada Fluminense e 80% dos mortos por agentes do Estado, nesta mesma região, eram pretos ou pardos.
Grandes situações emergenciais, como a pandemia do Covid-19, desnudam ao olhar externo a precariedade sob a qual a Baixada e outras periferias de nosso país estão submetidas. Mediante o pânico de um total descontrole da transmissão do vírus, e uma provável e esperada disseminação em massa nas favelas e periferias, muito se fala sobre o efeito devastador do Coronavírus nesses locais. Efeitos esses que serão potencializados justamente pela inexistência da garantia de direitos básicos, como à água. O descaso com a saúde pública, pauta recorrente de reivindicação dos movimentos sociais, é apenas um indicativo de como as populações mais pobres são tratadas.
Historicamente, pela não efetivação de políticas públicas, essas populações sofrem e têm a difícil missão de se reinventarem como forma de continuarem existindo. Mas até quando é possível prolongar a vida a partir de incessantes processos de resistência? Resistir é preciso, mas nunca foi e nem pode continuar sendo admissível condicionar o direito à vida do indivíduo a sua capacidade financeira ou o seu pertencer a um determinado grupo social. Afinal, para que servem os direitos humanos se não for para garantir os direitos de todos?”
Sharah Luciano. Moradora de Duque de Caxias. Mestranda em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas – PPGECC /UERJ
O perfil de defensores de direitos humanos na baixada fluminense passa pela categorização de mulheres negras, atuante em seus bairros, tendo relação direta com violações, sendo vivida elas mesma ou pessoas muito próximas, assim, diante do constante cenário de não respostas elas saem em busca de ações que possam minimizar os impactos das violências, em um trabalho de formiguinha que nunca pára.
“Eu como moradora da Baixada Fluminense, do município de B. Roxo não vejo nenhuma ação efetiva nem do município, muito menos do Estado.
Sou cria do Morro do Amor e mesmo na adolescência nunca tive acesso a essas discussões. Hoje nessa atual conjuntura vivemos a mercê de todo fascismo instalado nas esferas governamentais. Determinadas pautas são descaradamente invisibilizada pelas secretarias, e quando discutida não abordam o que realmente é preciso abordar.

As ações sobre debate sobre direitos humanos são feitas por Movimentos e pessoas que estão na linha de frente do combate contra todo genocídio da nossa população negra e periférica.
Precisamos cada vez mais dessa construção em conjunta para que possamos avançar nesse debate que é tão ignorado pelos governantes, pois a luta por direitos básicos é uma luta de todos.”
Vanessa Vicente. Moradora de Belford Roxo. Educadora Popula Uneafro.
As ações e mobilizações dos movimentos sociais na Baixada, que levam a bandeira da defesa da vida tem promovido conquistas importantes mas elas se tornam pouco diante à tragédia da violência e da realidade das favelas e periferias.
Imersos em uma pandemia em que territórios historicamente convivem com a ausência de políticas públicas básicas, como acesso a água, saneamento, urbanização e alimentação, seremos capazes também de caminhar ao combate do coronavírus e também na denúncia e no enfrentamento à violência? Não é apenas a violência letal que executa a população negra. A omissão do Estado, a ausência de políticas públicas como projeto político em um período de radicalização do neoliberalismo nos mata cotidianamente.
Direitos Humanos, pra quem?
*Agradecemos ao Osmar Paulino – geógrafo, fotógrafo e produtor do FAIM Festival (@faimfestival) em Imbariê – Duque de Caxias, por disponibilizar suas fotografias fenomenais sobre o cotidiano da Baixada Fluminense. Para ver mais fotos sensacionais como esta, acesse: @imbarie_fotos.