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Foto: Pierre Verger/ Revista Exame Abril

Por Monique Rodrigues

Das muitas histórias que formam a Baixada Fluminense, o município de Duque de Caxias nos apresenta inúmeras narrativas protagonizadas por Joãozinho da Goméia, personagem da vida real, ele é um fundamento para memória coletiva desse território, e uma personalidade que merece ser exaltada como importante agente de luta pelo direito à vida e às liberdades humanas.

Nascido João Alves de Torres, ele renasceu Pai João, Tata Londirá, Seu João da Pedra Preta e Joãozinho da Goméia, nesse percurso, em todos os passos, os cantos, as danças, as vozes, atuou de forma prática no combate os preconceitos sociais e raciais, que formam a sociedade brasileira, sendo no trânsito da história negra no Brasil, um dos líderes religiosos mais importantes para a cultura afrodescendente.

Durante o tempo que habitou nas terras de Caxias, Tata Londirá, utilizou os saberes afrodescendentes para combater o racismo religioso, que tragicamente encontra eco nos dias atuais. Sua capacidade de agir como um mediador entre as culturas, possibilitou um avanço estratégico na aceitação social dos terreiros de Candomblé em Duque de Caxias. Dialogar com pessoas de diferentes contextos sociais, e se fazer compreendido e respeitado, é uma das características mais emblemáticas de Joãozinho, que foi determinante para que naquele tempo histórico, as vivências das populações negras, como o Candomblé e o samba, pudessem resistir diante à violência imposta pela cultura da escravidão e absorvida nos períodos seguintes. É fundamental ressaltar que as metodologias de punição, castigo e violência dos quais os povos negros são vitimados, tem sua metodologia iniciada na sociedade escravagista, e foi sendo atualizadas a cada período histórico, com maior ou menor aplicabilidade. 

Neste começo de década, Joãozinho da Goméia é tema da escola Grande Rio, que no seu enredo faz referência ao município como Quilombo Caxias, ressaltando que a maior parte da população é formada por negros, como toda baixada fluminense, e que tem um dos índices mais altos de assassinatos de pessoas negras, ataques a terreiros e violências diversas contra a população LGBT, que com o aval do Estado, cresce assustadoramente a cada estatística.

A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial apresenta este editorial especial de carnaval, para rememorar Joãozinho da Goméia e o samba, como meio de resistência negra, mediante às violências históricas do Estado, que desde sempre promove o epistemicídio negro, como metodologia racista das suas ações. Mas sem esquecer, é claro, da incidência direta que a cultura possibilita ao utilizar as linguagens artísticas como método para construção de diálogo dessas (re) existências.

Seu João da Pedra Preta, caboclo, baiano, e assim como muitos, veio para o Rio de Janeiro e fez daqui a extensão da sua Bahia. Os municípios da Baixada Fluminense tem muito dessa característica, uma população negra que pelos idos das décadas de 1930 chega de forma maciça no grande Rio para trabalhar nas obras promovidas pelo prefeito Pereira Passos, que provoca a expulsão de um contingente de pessoas dos cortiços do Centro do Rio, nos primeiros processos de remoção forçada que moradores da área da Pequena África sofrem.  Chegando na Baixada Fluminense, encontram similaridades por conta do grande número de quilombos que formou esses territórios, e que produziu uma população resultante da resistência. Desses dois movimentos históricos a Baixada Fluminense se forma como um território majoritariamente negro, e com isso, algumas práticas culturais das diásporas africanas tornam-se o elo entre pessoas que nos movimentos de migração, vêem nesse cenário novas possibilidades de culto, rito, manutenção da sua fé e moradia, ressignificando as sociabilidades negras. A presença negra insere hábitos e cotidianos que envolvem a reinvenção da vida nas novas terras, nesse contexto o samba aparece como agente principal de construção dessas sociabilidades que vão estruturar novas maneiras para a ação da resistência diante as inúmeras tentativas de genocídio do povo negro.

Vale lembrar que a criminalização do lazer da população negra pelo crime de vadiagem, que tem seu marco histórico em 1941, e que já era desde sempre instituído pela Casa Grande e posteriormente a polícia, coloca o samba e as macumbas cariocas como práticas passíveis de repressão e prisão. Reprimidos pelos centros urbanos o sambista, que era quase sempre frequentador de algum terreiro, ganha espaço nos subúrbios e periferias, por meio dos quintas do samba, e nesses contextos, as letras trazem muito da vida desse lado de cá das linhas do trem. Outro ponto importante é ressaltar que essa população preta de terreiro, desde sempre, tem um compromisso com o espaço e o rito, porque compreende sua ligação direta com ancestralidade. Além disso o festejo une pessoas em torno de uma causa.

O samba torna-se um instrumento de enfrentamento à violência, e ao mesmo tempo produz valores inestimáveis para a identidade afro cultural do subúrbio, uma vez as primeiras agremiações, chamados ranchos, tinham como propósito a manutenção dos festejos das populações negras, que se misturava com as representações de terreiro, e a preocupação com a permanência das celebrações através das gerações. O som, as melodias, a canção, o toque, a vestimenta, a comida fazem parte de um rito que fundamenta as emoções de uma parcela significativa da população que encontra nos espaços entre das celebrações, uma oportunidade de exercício da cidadania, que é negada pelo racismo. Assim como o cruzo entre culturas possibilitaram a permanência da população afrodescendente no cotidiano, fortalecendo e recriando tradições, o carnaval nos remete refletir sobre estas influências na formação social dos festejos que temos em nosso calendário oficial. 

8 de agosto de 1942

Voltando à Caxias pelos passos de Joãozinho da Goméia, é torna importante ressaltar que Seu João da Pedra Preta exercia suas funções de forma versátil. Entre 1949 e 1951, por exemplo, Pai João manteve o seu atendimento por meio de um seção do jornal Diário Trabalhista. Chamada “Ao cair dos búzios”, os leitores enviavam suas cartas endereçadas à redação, Joãozinho da Goméia respondia de volta e o jornal publicava as respostas. Essa coluna movimento e popularizou as religiões de matriz africana em Duque de Caxias, e tornou nosso respeitável protagonista uma figura famosa e reverenciada. O terreiro no bairro Copacabana passou a ser frequentado por diversas  pessoas, e Joãozinho da Goméia ampliou sua voz contra os ataques violentos que os terreiros sofriam, lutando pela realização das atividades dos terreiros, o que muitas vezes lhe custou a própria liberdade. Além disso, esse movimento, trouxe ao debate a narrativa do estereótipo racista que perpassa todas as expressões oriundas das vivências negras, essa ainda é uma das principais disputas que as religiões de matriz africana fazem no Brasil.

No curso da história o município de Duque de Caxias tornou-se um dos principais territórios da Baixada Fluminense, mais populoso e com a maior per capita, entretanto as desigualdades e violências ainda fazem parte da assustadora estatística que formula essa narrativa. 

Joãozinho da Goméia; Duque de Caxias; Carnaval; Samba; Terreiros, todos esses mundos de histórias, memórias e vivências fazem parte de uma luta histórica contra as injustiças, que foram e são resultados dos processos de violência iniciados pelo sistema escravagista e perpetuados pelo Estado por meio de políticas genocidas. A ação de enfrentamento à essas violências sempre emana das populações mais afetadas, e essas resistências não são contadas, pelo contrário, os que resistem são marginalizados, deslegitimados e negligenciados, mas a exemplo da malandragem do samba, seguimos.

Salve Pai João, Tata Londirá, Seu João da Pedra Preta, Joãozinho da Gomeia e João Alves de Torres, todos esses que é um e muitos. Nossos passos vêm de longe.

 Celebre o carnaval!


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